Por Reinaldo Azevedo
Já ouviram falar da famosa “Batalha da Maria Antônia”, que opôs, de um lado, alunos da USP (Universidade de São Paulo) e, de outro, estudantes da Universidade Presbiteriana Mackenzie? Maria Antônia é a rua onde ficam os dois edifícios. O conflito mais grave aconteceu no dia 3 de outubro de 1968. Era um capítulo da disputa entre esquerda (USP) e direita (Mackenzie), embora, evidentemente, houvesse em ambos os lados quem não estivesse nem de um lado nem de outro. Também nisso o “martiriologismo” esquerdista funciona. Na guerra, os mackenzistas, mais numerosos, acabaram invadindo o prédio da USP. A ação foi atribuída ao CCC — Comando de Caça aos Comunistas. Os uspianos eram liderados por facções de extrema-esquerda. Quais? Ninguém cita porque vocês sabem: o “Bem” não tem nome nem bandeira, não é? Um secundarista de 20 anos (?) morreu com um tiro. A acusação é de que a bala partiu do Mackenzie. Só uma nota para quem não é de São Paulo: o prédio ainda pertence a USP, mas não abriga mais nenhuma faculdade. Os cursos de filosofia, ciências humanas e letras migraram para a Cidade Universitária.
Vejam só! A “Batalha da Maria Antônia” completa, em 2008, nada menos de 40 anos. E o que podemos afirmar com absoluta e resoluta certeza? No plano das idéias — das idéias as mais torpes —, quem invadiu o Mackenzie foi a USP. A pior USP. A USP dos remelentos e das mafaldinhas. E não será difícil demonstrá-lo.
No dia 26 do mês passado, a universidade presbiteriana realizou o seu vestibular de meio de ano. Estou vendo a coisa agora. Não sei se encomenda a alguma instituição ou se faz ela própria a prova. Em qualquer dos casos, escrevo este texto porque argumento que duas de suas questões têm de ser anuladas. Motivo: estão erradas. Causa do erro: indigência ideológica. Uma terceira é, quando menos, discutível.
É um sinal evidente de que os miasmas da ideologia rasteira que contamina as universidades públicas chegaram também ao ensino privado universitário, mesmo numa instituição como a Mackenzie, que nunca foi pautada por, deixe-me ser genérico, uma crítica revolucionária ao statu quo, a exemplo da USP e das universidades federais — refiro-me, claro, àqueles cursos que dispensam a técnica e estão especialmente sujeitos à retórica. Para que não fale no abstrato, vamos lá: as questões seguem em vermelho. Comento, em seguida, em azul:
Questão nº 60
• Ampla política de privatização das empresas estatais
• Manutenção de altas taxas de juros para atração do capital estrangeiro
• Corte de gastos governamentais destinados a serviços e programas sociais
• Flexibilização da legislação trabalhista
As medidas relacionadas acima se destacaram entre as mais importantes da política econômica posta em prática ao longo dos oitos anos do governo FHC (1995-2002). Há certo consenso segundo o qual elas permitem caracterizar essa política como sendo
a) nacional-desenvolvimentista.
b) comunista.
c) neoliberal.
d) keynesiana.
e) socialista.
A questão é apenas mentirosa na sua formulação. Em rigorosamente todos os seus itens, exceção feita a um apenas: as privatizações. Observem. Nos oito anos do governo FHC:
– não houve desregulamentação do mercado nacional. O que quer dizer isso, afinal? Houve, sim, mais regulamentação, com a criação das agências reguladoras. Quem elaborou o exame pode escrever para cá tentando me provar o contrário.
– É uma bobagem dizer que as taxas de juros foram mantidas altas para atrair capital estrangeiro. O objetivo principal era o controle da inflação — até porque o capital externo entrava justamente por causa das “amplas privatizações” — infelizmente, nem tão “amplas” assim. A prova dos noves foi a elevação de juros no fim de 2002 e início de 2003, já sob o governo Lula. A inflação é que tinha voltado a mostrar a cara, embora modesta perto daquela que foi eliminada pelo Plano Real.
– O governo FHC não cortou programas sociais. Ele os ampliou. As ações hoje concentradas no Bolsa Família foram criadas na gestão tucana na forma de vários programas, como Bolsa-Escola e Vale-Gás, por exemplo. Lula os reuniu sob a rubrica de Bolsa Família e ampliou o número de pessoas atendidas. A Reforma da Previdência, por exemplo, feita sob o governo Lula, acabou sendo mais drástica do que aquela feita por FHC. Infelizmente.
Questão nº 59
O que é meridianamente claro é que a ditadura deixa uma herança arrasadora. Desorganização, miséria, cinismo político, corrupção institucional, inflação de três dígitos e recessão, uma dívida interna e externa calamitosa e combinada ao controle imperialista, programado por dentro da nossa economia e da nossa política econômica, uma burguesia desmoralizada pela aventura contra-revolucionária, um Estado minado por doutrinas e práticas autocráticas, um regime de partidos montado para pulverizar as forças sociais ativas na sociedade civil e, especialmente, para fortalecer o sistema como núcleo de militarização do poder político estatal. (Florestan Fernandes – Eleições diretas e democracia).
a) pelos longos anos do Estado oligárquico, dominado pelos cafeicultores de São Paulo e Minas Gerais, entre 1890 e 1930.
b) pela década e meia do governo conduzido autoritariamente por Getúlio Vargas, após o triunfo do movimento político de 1930.
c) pelos governos populistas de Juscelino Kubitschek e João Goulart, entre 1946 e 1964.
d) pelo regime militar, durante o qual se sucederam cinco presidentes generais, entre 1964 e 1985.
e) pelos desastrosos anos dos governos de Fernando Collor e Itamar Franco, de 1990 a 1995.
Qual é a certa, hein? Isso. Você acertou, leitor amigo. É a “D”. Embora o que vai acima, redigido pelo petista, já morto, Florestan Fernandes, pareça a descrição do governo Lula, o “eminente sociólogo” está se referindo, como exige o gabarito, ao regime militar havido no país entre 1964 e 1985. Como sabemos, antes de 1964, não havia por aqui coisas feias como “desorganização, miséria, cinismo político, corrupção institucional, inflação, dívida interna e externa”. Ao ver aquele paraíso, os militares pensaram: “Vamos dar um golpe?”. E deram. A população só não se revoltou porque também era contra o mundo edênico de João Goulart. E os militares, como sabemos, não deixaram legado positivo nenhum. Pegaram um país praticamente agrário e entregaram aos civis a 10ª economia do mundo — em crise, é verdade. E você não precisa ser de esquerda ou de direita para reconhecê-lo. Basta não ser idiota e mentiroso. Só uma coisa: esse negócio de uma das dez maiores economias, sei bem, é coisa a se ver com cuidado. A distância entre a 10ª e a 1ª era tal, que o agrupamento parecia alegria de pobre. Tá bom. Mas não viramos uma Albânia continental — o destino a que Jango nos empurraria.
Questão nº 35
b) A Austrália, interessada no petróleo timorense, patrocina a invasão indonésia para garantir a exclusividade da exploração dos recursos minerais timorenses.
c) A Indonésia, por ser um país predominantemente muçulmano, invade o Timor Leste para converter os cristãos e ampliar a área islâmica no sudeste da Ásia.
d) Após a vitória do grupo ditatorial ultra-direitista FRETILIN, na guerra civil timorense de 1975, o exército indonésio invade o território do Timor para garantir a democracia da região.
e) Após a entrada da Indonésia no grupo dos Tigres Asiáticos, o Japão, interessado nas riquezas naturais do Timor, apóia a invasão indonésia.
A resposta considerada certa, obviamente, é a alternativa A. E, no entanto, eu lhes digo: trata-se de uma simplificação grosseira. Ela tem laivos de verdade. Como também tem a alternativa B. O fato é que os portugueses — de esquerda! — que estavam na ilha (ou na meia ilha) resolveram deixar o Timor entregue à também esquerdista Fretilin, que expulsou de Dili os adversários, com o intuito de criar um regime comunista no Timor Leste. Suharto, que governava a Indonésia e vinha de uma luta sangrenta contra os comunistas, estava claro, não permitiria. A Guerra Fria só entra na jogada porque, a rigor, qualquer conflito regional, no mundo, sempre era influenciado por ela. Mas é uma estupidez a suposição de que houve uma iniciativa americana para preservar os “interesses capitalistas”. Ademais, havia no país correntes pró-Indonésia, como há ainda. Quanto a alternativa B, observe-se: a Austrália pode não ter “patrocinado” a Indonésia, mas apoiou a invasão — e por causa do petróleo. Foi o único país a reconhecer o Timor Leste como território indonésio.
Desalentador
Trata-se de um quadro desalentador. Só fico mais tranqüilo quanto ao desempenho dos alunos porque as escolas de segundo grau, públicas ou privadas, e os cursinhos não dizem bobagens muito diferentes das que vão acima. Já conhecemos a contaminação do material didático, não é? Talvez fosse o caso de criar um selo de qualidade para carimbar livros sérios: “Livre de Mistificação”. Ou “Este livro não polui crianças e adolescentes”.
Quarenta anos depois, a USP invade e depreda o Mackenzie. Acorda, Cláudio Lembo!
Publicado no blog do autor em 6 de julho de 2007.