Por Miguel Nagib
Há dois anos, um pequeno grupo de pais e estudantes preocupados com a contaminação ideológica de nossas salas de aula decidiu fazer algo para combater essa grave ameaça ao ensino. Criaram, para isso, uma organização informal que, a exemplo de tantas iniciativas nos dias de hoje, se materializou numa página da internet: o www.escolasempartido.org.
O EscolasemPartido.org, que tem por modelo bem sucedidas experiências realizadas nos EUA – especialmente o www.studentsforacademicfreedom.org e o www.noindoctrination.org –, se baseia na premissa de que, numa sociedade livre e pluralista (como diz ser a nossa), as instituições de ensino deveriam funcionar como centros de produção e irradiação do conhecimento, firmemente comprometidos com a busca da verdade, abertos às mais diversas perspectivas de investigação e capazes, por isso, de refletir, com a máxima fidelidade possível, os infinitos aspectos e matizes da realidade. É o que estabelece, com outras palavras, a própria Constituição Federal, ao dispor que “o ensino será ministrado com base nos princípios da liberdade – de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber – e do pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas”.
Infelizmente, contudo, isto não vem ocorrendo em grande parte das instituições de ensino no Brasil, da pré-escola à universidade.
Imbuídos da crença de que um outro mundo é possível, mas cientes, ao mesmo tempo, de que todas as tentativas históricas de implantar o paraíso na Terra, vitoriosas a princípio, acabaram fracassando de uma forma ou de outra em virtude do “mau comportamento” de seres humanos “egoístas”, “individualistas”, “ignorantes”, “atrasados” e terrivelmente apegados a instituições, valores e “preconceitos” burgueses – família, religião, patriotismo, propriedade privada, hierarquia, lealdade, etc.–, alguns ideólogos perceberam que o advento desse outro mundo só seria realmente possível se precedido de uma profunda transformação na mentalidade das pessoas. E concluíram, por fim, que essa transformação haveria de ser realizada sobretudo por meio da educação.
Tratava-se, portanto, de uma dupla tarefa a ser posta em prática por educadores ideologicamente engajados: demolir o mundo malvado com a marreta do pensamento crítico e construir o mundo bom com a argamassa do politicamente correto: relativismo, multiculturalismo, igualitarismo, coletivismo, ecologismo, secularismo e outros ismos. Em suma: demolir e transformar em vez de simplesmente estudar e compreender o mundo.
Para a consecução desses objetivos, naturalmente, o educador do passado – para quem a educação era apenas uma forma de transmitir um conhecimento objetivo sobre a realidade – deveria ser substituído por um novo tipo de profissional. De acordo com essa concepção – defendida, entre muitos outros, pelo Prof. Jefferson Ildefonso da Silva, doutor em Educação pela PUC/SP, em artigo acadêmido publicado na Internet e reproduzido na seção “Corpo de Delito” do EscolasemPartido.org –, o professor deve atuar em sala de aula como o “intelectual dirigente e orgânico” de Antonio Gramsci. Cabe aos educadores – diz o Prof. Jefferson – “conquistar o lugar de intelectual dirigente e colaborar para a organização popular na sua luta por uma nova ordem social e econômica”. Para isso, é necessário ultrapassar o “estágio romântico da consciência do professor”, caracterizado pela idéia de “vocação”, pelo “entusiasmo pela educação” e pela “crença no valor da ciência e do saber”. É fundamental que o professor se conscientize de sua condição de “trabalhador do ensino”. A partir desse momento, os professores “se organizam, se sindicalizam, provocam lutas massivas e fornecem um número elevado de militantes aos partidos de esquerda”. Tomam consciência de ser “militantes de uma causa política, partícipes de uma nova insurreição, à qual deveriam dedicar-se com mística revolucionária que não é outra coisa senão um amor interno e profundo para com as massas exploradas e dominadas no passado”. A consciência política, “imprescindível para que o conhecimento seja científica e tecnicamente organizado segundo os interesses populares”, “é o objetivo máximo de toda a formação do professor”.
Várias gerações de educadores foram e continuam a ser educadas segundo os cânones dessa pedagogia.
Em sua oposição democrática a esses cânones – assegurada pelo art. 206, incisos I e II, da Constituição Federal –, o EscolasemPartido.org recebe e divulga depoimentos de estudantes que se sintam vítimas de doutrinação em sala de aula, garantindo ao professor ou instituição nomeada o exercício do direito de resposta. Além disso, o site – que é o único no gênero em língua portuguesa – pretende ser um centro de referência sobre o assunto, reunindo artigos, resenhas críticas de livros didáticos, atos normativos, debates, relatos e todo material relacionado ao problema da instrumentalização do conhecimento para fins político-ideológicos.
O EscolasemPartido.org tem despertado grande simpatia entre pais preocupados com a educação de seus filhos e estudantes que não se limitam a exercer o pensamento crítico em relação aos alvos pré-determinados por seus professores. A iniciativa, no entanto, como não podia deixar de ser, desagradou muita gente. Grosso modo, nossos críticos se dividem em três grupos: os que se recusam a admitir a existência da doutrinação ideológica nas escolas; os que sabem que ela existe, talvez não concordem com a sua prática, mas por preguiça, acomodação ou solidariedade com a corrente política que a promove de forma organizada e sistemática se abstêm de condená-la; e, finalmente, os que a reconhecem e defendem sem pudor. Entre os dois últimos grupos, é comum a objeção, recentemente manifestada numa mensagem ao site, de que “todos nós temos ideologias, posicionamentos críticos frente a algo, não somos seres humanos vazios, temos as nossas crenças e valores que nos encaminham a algo”.
É verdade, mas isto não resolve o problema. A questão está em saber se professores, em sala de aula, devem dar livre curso às suas ideologias, crenças, simpatias e antipatias, na tentativa de moldar a cabeça de seus jovens e inexperientes alunos à sua própria imagem e semelhança; ou devem fazer um esforço permanente para conter essas tendências e se aproximar, tanto quanto possível, da perfeita (e talvez inatingível) objetividade científica.
Além disso, impõe-se a pergunta: se a contaminação ideológica é, como dizem, uma realidade incontornável, não estariam as instituições de ensino moralmente obrigadas a promover o equilíbrio ideológico dos seus respectivos corpos docentes, dando aos estudantes a oportunidade de confrontar dialeticamente as diversas perspectivas de seus professores e extrair desse confronto uma visão mais rica e abrangente da realidade?
A nosso ver, as duas coisas são necessárias e moralmente obrigatórias. Cabe ao educador renovar diariamente o seu compromisso com a objetividade científica e é dever das escolas promover o equilíbrio de perspectivas político-ideológicas dos seus quadros de professores (é óbvio que no interesse dos alunos e não no dos integrantes dessa ou daquela corrente de pensamento), como forma de neutralizar os inevitáveis resíduos de contaminação ideológica.
Nada disso, porém, está acontecendo. Refém da concepção pedagógica acima descrita, a maior parte das instituições de ensino – públicas e privadas, laicas e confessionais – sequer admite, por fraqueza ou cumplicidade, a existência ou a gravidade do problema. Quando confrontadas com denúncias concretas, negam os fatos ou tentam minimizá-los, tratando-os como episódios isolados. Os próprios estudantes, em reação sintomaticamente análoga à observada entre vítimas de seqüestros – a conhecida síndrome de Estocolmo –, assumem a defesa, quase sempre agressiva, dos professores acusados de doutrinação. Os alunos descontentes se calam. O medo de abrir a boca tomou conta da escola.
A educação no Brasil, como todos sabem, vai muito mal, mas os grupos que investem na doutrinação político-ideológica em sala de aula não têm do que reclamar. Seu portfolio contém investimentos de maturação lenta – crianças do ensino fundamental – e aplicações de curto-prazo – adolescentes na faixa dos 16 anos. Estudantes vampirizados no processo são automaticamente incorporados ao exército de voluntários, assegurando a expansão do negócio. Ao contrário do que sempre acontece, o governo não só não atrapalha, como incentiva, acoberta e patrocina a doutrinação. E os resultados estão aí, exuberantemente demonstrados pela morbosa uniformidade ideológica do cenário político e cultural brasileiro. Um êxito absoluto.
Outubro se aproxima e esses grupos já se preparam para o vale-tudo das eleições. Se nada for feito, nossas salas de aula serão novamente seqüestradas por professores dirigentes e orgânicos, empenhados na transformação da sociedade e, mais diretamente, na conquista de votos para os candidatos e partidos de sua predileção. É inútil esperar do governo alguma providência. Cabe à sociedade e, de modo especial, aos próprios estudantes, impedir que isto ocorra.
Miguel Nagib é advogado e coordenador do EscolasemPartido.org