Que a escola pública nada ensina, todo mundo sabe. O que os pais ainda não perceberam é que a escola, além de não melhorar o intelecto de seus filhos, pode deformar-lhes o caráter. Matricular uma criança em escola pública é quase o mesmo que entregá-la para o crime organizado. As escolas são um celeiro de marginais. Eles espancam colegas, colam professores nas carteiras e até matam, quando contrariados. E não ficam apenas impunes — tornam-se verdadeiros heróis das faculdades de pedagogia do país. Praticamente todas as dissertações de mestrado e teses de doutorado produzidas sobre violência nas escolas tomam o partido do marginal, tratado como uma espécie de revolucionário, que subverte as normas estabelecidas. Sei muito bem disso porque defendi dissertação de mestrado sobre o tema (leia trecho aqui) e tive de suportar as teses mais absurdas e abjetas sobre violência e indisciplina nas escolas produzidas por nossos doutores e mestres, a maioria deles, mocinhos e mocinhas bem nascidos que nunca tiveram que tomar ônibus à noite para sobreviver dando aula para gangues juvenis de periferia.
Um exemplo desse tipo de ideologia do crime disfarçada de pesquisa científica é a tese de doutorado em Educação da professora Sueli Aparecida Itman Monteiro, intitulada Luzes, Sombras e Crepúsculos nas Vivências Cotidianas de Duas Escolas de Primeiro Grau: Sucessos, Fracassos, Evasões, Exclusões, defendida na USP, em 1996, sob a orientação da Dra. Maria Cecília Sanchez Teixeira. Pela carruagem se vê o que vem dentro: a esconsa subliteratura rococó do título repete-se ao longo de todo um capítulo da tese, que será examinado aqui.
Antes de se tornar doutora em educação na USP, Sueli Monteiro havia feito graduação em pedagogia e mestrado em Metodologia do Ensino na Universidade Federal de São Carlos. Atualmente, é professora efetiva da Unesp de Araraquara. Seu alentadíssimo currículo Lattes se estende por 21 páginas. Até o dia 29 de abril de 2008, ela já havia participado de 18 bancas examinadoras de mestrado e 11 de doutorado. Orientou três dissertações de mestrado já concluídas e está orientando outras duas, além de três teses de doutorado. Dezenas de outros trabalhos técnico-científicos, inclusive participação em bancas de concurso público, completam seu currículo.
Apesar de tantas qualificações científicas, o texto da tese de doutorado de Sueli Monteiro chega a ser pueril. Inspirando-se na sociologia degenerada do francês Michel Maffesoli, a autora cultua acintosamente a brutalidade das gangues juvenis, tentando fazer poesia a partir dela, o que se torna ainda mais grotesco. Em dezembro de 1998, nos Cadernos Cedes (Ano XIX, nº 48), da Unicamp, uma das mais conceituadas publicações pedagógicas do país, Sueli Monteiro publicou o artigo “Tentando compreender Prometeu e Dionísio na mira da Violência“, resumo do segundo capítulo de sua tese de doutorado. Eis como ela inicia o artigo:
“Vinha de um epistema desencantado, do qual o econômico e o social tinham que dar conta, e se não davam a ele sua relevância, relevante ele não era. Sim ou não eram as possibilidades de resposta. A razão fechava-se no uno, sem a possibilidade de um talvez. O oficial, o institucional e o patente eram visíveis e considerados. O invisível, subterraneamente latente, oficioso e instituinte não aparecia. Faltava captar a relação entre luz e sombra. Negava-se o crepuscular, o imaginal e a percepção do ‘religar’. Deparei então com o afeto, com a complexidade, com a diversidade, a alteridade, e a ambivalência. Uma ‘razão aberta’ encandesceu-se diante de meus olhos, amparando-me ante um universo de todas as possibilidades. Mergulhei. Reencantei-me e hoje estou aqui. Não falo por todos, falo apenas pelo meu sentir. Não faço generalizações. O que relato está territorializado no seio de identidades microgrupais. Vivem o momento de seus epistemas. Sentem, agem e pensam de modo único. Constroem suas cotidianidades tal qual a lógica própria que lhes rege o existir.”
Esse texto que “não fala por todos” apenas pelo seu “exclusivo sentir” já seria muito ruim se fosse trabalho de final de curso de estudante de graduação. Mas não é. Como já disse (e digo de novo, porque é espantoso), essa verdadeira convulsão mental resulta de uma tese de doutorado defendida na USP — o que mostra o quanto as ciências humanas no país faliram, não passando de dejeto ideológico. O entusiasmo de Sueli Monteiro com a incandescente “razão aberta” da gangue não se apaga nem mesmo diante do modo bárbaro como os machos dessa horda urbana tratam suas fêmeas, como se depreende do trecho abaixo:
“Desenvolviam uma forte amizade no grupo, que os levava a uma socialização de tudo o que possuíam. Em nome da amizade grupal aceitavam que uma garota, depois de ter namorado, terminasse o namoro e iniciasse outro relacionamento, desde que também fosse com um garoto do grupo. Porém, em se tratando da convivência com pessoas que não pertenciam ao grupo, não aceitavam conselhos e viviam uma relação dúbia que ia da passividade à agressividade”.
É inacreditável que uma pesquisadora, — mulher, — não se preocupe com a seguinte frase que escreve, prosseguindo irrefletidamente seu texto como se a frase não estivesse ali, revelando uma volta da juventude moderna aos tempos primevos da horda: “Em nome da amizade grupal aceitavam que uma garota, depois de ter namorado, terminasse o namoro e iniciasse outro relacionamento, desde que fosse com um garoto do grupo”.
Mesmo tratando-se de uma tese de doutorado, a autora não reflete sobre as violentas relações de gênero que se estabelecem dentro desses grupos de estudantes que formam gangues, como fica claro na atitude que ela própria descreve, com deslumbramento: a gangue, segundo ela, socializava tudo que possuíam, inclusive suas mulheres. Ou seja, na concepção dos homens da gangue, as mulheres não passavam de propriedade coletiva da horda. Percebe-se que não eram pessoas, não tinham individualidade. Podiam até ser mortas, como se depreende de um trecho mais à frente, onde a autora menciona uma briga por causa de mulher que quase terminou em assassinato. E estamos falando de adolescentes. As mulheres em questão são, na verdade, meninas. Mesmo assim, seu infortúnio não sensibiliza Sueli Monteiro, que prefere louvar a brutalidade dos machos da horda.
É como se um pesquisador do início do século passado, estudando o cangaço, se imaginasse apto a criar um “projeto pedagógico” capaz de estabelecer “valores e limites” para Lampião.
Seria irônico, se não fosse trágico, que uma autora com sensibilidade tão hipertrofiada para as sutis “violências simbólicas” da instituição escolar seja tão insensível à violência física das hordas modernas. Aliás, a ética das gangues tem uma estética — a dos grupos de hard rock, festejados pela intelectualidade universitária. No álbum Lavô Tá Novo, Os Raimundos, por exemplo, louvam o estupro de horda numa das faixas do disco que traz o sintomático título de “Tora, Tora”:
“Se ela tá gemendo é porque eu sou um cara legal / se ela tá tremendo é que ela gostou do meu pau / se ela tá gritando é que ela tá querendo mais / se ela tá berrando é hora de meter por trás. / Tora, tora. / É isso aí, moleca doida. / É que a moçada da minha área / só pára quando salta a bola do olho.”
Os dois versos finais deixam evidente uma concepção do sexo semelhante àquela praticada pelos sérvios durante a guerra com os bósnios — o sexo não como busca individual do prazer consentido, mas como conquista brutal dele, mediante a lavagem étnica. Assim como Sueli Monteiro, Os Raimundos também extraem “poesia” desse cotidiano violento das gangues juvenis. Só que parecem mais honestos e não disfarçam essa rendição à barbárie com palavras melífluas, importadas da sociologia psicotrópica dos franceses.
Quem conhece gangues e não se deixa deslumbrar por elas sabe de casos de estupros coletivos praticados por seus membros, muitas vezes contra suas próprias parcerias, como forma de punição, caso ela venha a namorar um membro de outro bando. Se os meninos das gangues são vítimas de injustiça social, como acredita Sueli Monteiro, as meninas são duplamente vítimas, porque as gangues não são idílicas instituições feministas, como muitos pesquisadores fingem acreditar — elas reproduzem, ainda com mais intensidade, a violência de gênero. É o que se constata no artigo “A violência enquanto agravo à saúde das meninas que vivem nas ruas” (Cadernos de Saúde Pública, Vol. 10, Sup. 1, 1994), de Romeu Gomes, doutor em saúde pública pela Fundação Osvaldo Cruz e livre-docente da UERJ. Em sua pesquisa é possível constatar essa dupla violência sofrida pelas meninas de rua:
“Podemos melhor observar este tipo de violência no relato das meninas quando uma delas conta o estupro de que foi vítima a sua mãe e quando outra afirma precisar ter sono leve para se proteger dos ‘garotos rasgando a blusa das garotas com gilete para poder comer as garotas à força’. (…) Eu conheço uma menina que foi quatro homens fazer barbaridade com ela. Foi o Meinho, o falecido Dandinho, e foi o Claudinho, foi um monte de garoto, tudo comendo uma garota só. Fizeram tudo com ela. Botaram na boca dela, fizeram ela fazer um monte de coisa.”
Mas, em vez de atentar para esse código bárbaro das gangues em relação às suas mulheres, Sueli Monteiro prefere desculpar os agressores vendo apenas poesia em suas ações, a ponto de glorificar a suposta ética grupal da gangue e apontá-la como norte ético para uma prática educativa:
“Quando falamos em violência no interior da escola, não dá para começar a discussão sem que seja estabelecido um código de ética grupal que venha delimitar conceitos e ações. Ao mesmo tempo em que o agressor incomoda, ele também é incomodado, e, portanto, nada melhor do que construir — dentro do projeto pedagógico de cada escola — as bases para uma sociabilidade que não venha a negar o conflito, mas que estabeleça os valores e os limites de suas transgressões”.
É como se um pesquisador do início do século passado, estudando o cangaço, se imaginasse apto a criar um “projeto pedagógico” capaz de estabelecer “valores e limites” para Lampião. Além disso, quem incomoda os agressores num ambiente escolar? Os professores, que perderam qualquer autoridade sobre eles? Suas vítimas, desprotegidas e transidas de medo? Pedagogos como Sueli Monteiro, que os glorificam? Só uma pedagogia muito inconseqüente pode achar que um aluno de escola pública bem comportado é capaz de incomodar os membros de uma gangue juvenil. É claro que qualquer aluno da escola que contrariar um membro dessa gangue será massacrado sozinho pela gangue inteira, como forma de vingança.
Além dessa presunção acadêmica, que julga o conhecimento onipotente, capaz de render até as armas, há uma assepsia moral, que coloca em pé de igualdade todos os valores. Sociologicamente, a brutalidade dos jovens estudados por Sueli Monteiro pode até ser explicada no contexto da gangue e segundo a sofrida história de vida de alguns de seus membros (não de todos, é bom frisar), mas essa explicação não elimina o estrago que eles fazem em suas vítimas, a começar pelas meninas que lhes servem de propriedade.
Como a esmagadora maioria dos textos que versam sobre indisciplina e violência nas escolas, também este coloca-se frontalmente contra a instituição escolar, notadamente diretores e professores, para tomar o partido dos alunos, no caso, os alunos da gangue. Sueli Monteiro afirma que “desejava entender, a partir de suas próprias versões, o que levava aqueles jovens a transgredir as regras sociais”. Infringindo a regra da boa ciência, que submete a hipótese ao fato, Sueli Monteiro faz o contrário e despreza o fato em favor da ideologia. Antes mesmo de ter contato com a gangue, ela descarta como um erro de “setores conservadores” a visão negativa que a mídia, os moradores do bairro e muitos professores da escola tinham da violência praticada pelos menores:
“Discordava de tais posições e entendia que a análise e a busca de caminhos para o fenômeno da violência e da transgressão careciam de uma amplitude de olhar que se afastava dessas noções estigmatizadoras do diverso. Para não incidir no mesmo erro, que tantos outros já haviam cometido através de seus generalismos, reducionismos e simplismos, procurei ancorar-me nas obras de Edgard Morin, Michel Maffesoli, Gilbert Durand, J.C. de Paula Carvalho, M.C. Sanches Teixeira, M.R. Silveira Porto, H. Suano e A.M. Guimarães.”
Como se percebe no trecho citado, a autora acusa de ter uma visão reducionista todos aqueles que se queixavam da violência da gangue, simplesmente porque a visão deles não se enquadrava na cartilha ideólogica de seus autores prediletos. Ao falar de sua convivência com a gangue, Sueli Monteiro chega a dizer que “tão rara beleza merecia ser poeticamente tratada”. E que poesia era essa? A mesma do cangaço de Lampião:
“Iniciado o processo de entrevistas, os diretores relataram os efeitos dos atos dos garotos da gangue no interior da escola. Por exemplo, a dissolução de um grupinho no interior da escola, composto por garotos da gangue, resultou no apedrejamento das instalações escolares. Chamada a polícia, responderam-lhes: ‘Pode chamar, somos de menor’. Para os diretores, a gangue, que era composta por quase 200 elementos, trazia reflexos nefastos para o cotidiano escolar, na medida em que alguns de seus componentes que lá estudavam criavam encrenca, geravam brigas por causa do tráfico de drogas, e em um dos fatos graves ocorridos, por causa da namorada de um dos garotos da gangue, um aluno quase chegara à morte. Nessas brigas, objetos cortantes como facas e tesouras, ou até mesmo as carteiras da escola, tornavam-se armas. Nas festas escolares, abertas à população, várias gangues se encontravam e ficavam fazendo duelos de dança, o que inevitavelmente acabava em confronto violento.”
Releeiam o trecho acima e observem a gravidade dos atos praticados pela gangue: depredação da escola, brigas usando carteiras, facas e tesouras e um quase assassinato por causa da namorada que era propriedade de um dos membros da gangue. Sueli Monteiro narra tudo isso sem um fremir de nervos. Faz questão de deixar claro que os diretores é que achavam que a gangue trazia reflexos nefastos para o cotidiano da escola. Ela mesma não pensa assim, e não é por distanciamento científico, uma vez que sua tese foi escrita com as vísceras, tomando explicitamente o partido da gangue. Em nenhum momento parece passar-lhe pela cabeça que, obviamente, esses atos de extrema violência impediam o bom aproveitamento escolar dos demais alunos que não participavam da gangue e deviam ser a grande maioria. Eles não têm o direito de estudar? Devem ser os novos excluídos, em nome da inclusão da gangue?
Chamar esse texto de tese científica é uma ofensa à ciência. Ele não passa de um manifesto em favor da desordem. Sueli Monteiro ficou dois anos pesquisando na referida escola onde havia a gangue para fazer sua tese de doutorado. Como pesquisadora, ainda por cima da USP, é óbvio que sua palavra tinha um enorme peso na comunidade escolar. E ela estava claramente do lado dos transgressores, que depredavam a escola. Uma boa hipótese é a seguinte: até que ponto as teses científicas sobre violência nas escolas não interferem no objeto estudado, ao tomar o partido dos agressores?
É possível supor que, durante o período em que esteve naquela escola, a presença de Sueli Monteiro significou uma completa subversão da ordem. Aqueles alunos que queriam estudar e não podiam, devido à atuação predatória da gangue, foram ainda mais injustiçados, quando Sueli Monteiro, com sua autoridade de “doutora da USP”, em vez de reforçar o comportamento dos bons alunos, passou a encontrar justificativas arrevesadas exatamente para o comportamento criminoso da gangue. Essa hipótese é muito provável, porque já aconteceu algo semelhante com a pesquisadora Áurea Guimarães, da Unicamp, como se constata em outro dejeto ideológico, o livro A Dinâmica da Violência Escolar (Editora Autores Associados), que, me sobrando estômago, também hei de anallisar aqui.
O poder da gangue na escola — que Sueli Monteiro deve ter reforçado com sua tese — fica muito claro em seu próprio relato. Segundo ela, foram os membros da gangue que abriram a quadra de esportes aos sábados e domingos para a participação da comunidade. E “nas festas escolares, abertas à população, várias gangues se encontravam e ficavam fazendo duelos de dança, o que inevitavelmente acabava em confronto violento”. E os demais alunos que não eram membros da gangue? E os pais dos demais alunos, que gostariam de ter um ambiente saudável para seus filhos? Sueli Monteiro não pensa neles? Quando pensa é apenas para dizer que eles também incomodam os agressores da gangue?
Pode-se chamar um ambiente assim de escola? Claro que não. Uma escola dessas é, sem dúvida, um embrião do crime organizado. Aliás, essa história de abrir escola para a comunidade nos finais de semana, como forma de combater a violência, como pregam todos os pedagogos ditos progressistas, é tudo o que os marginais querem. Dessa forma, eles passam a ter dois dias a mais (sábado e domingo, num ambiente festivo) para vender droga na escola.
Só uma ciência moralmente espúria e cognitivamente insana pode comprazer-se na “epifania da tragédia e da comédia da violência”, ainda mais entre pessoas em formação, no caso, os jovens de escola pública.
Apesar de se passar por pesquisa científica de alto nível, uma vez que se trata de uma tese de doutorado da maior universidade da América Latina (convém frisar isso sempre), o texto de Sueli Monteiro não passa de uma algaravia, cheio de frases expletivas, que acabam servindo de proteção intelectual para a própria autora. Como é muito enfadonho ler o seu texto deslumbrado, torna-se difícil perceber a sandice e a imoralidade de suas teses. Vejam o trecho abaixo:
“Para a garotada da gangue, aquele era o espaço da socialidade, onde se encontravam a fim de namorar, rir, brincar, dançar, jogar, contar seus casos, alimentar-se, acertar as contas com quem lhes incomodava, e esquecer a briga da família, o pai alcoolizado, a surra levada sem saber a causa, a bolinação incestuosa, a falta de comida, o desafeto desrespeitoso, o cansaço provocado pelas atividades domésticas tais como limpar, cozinhar e cuidar dos irmãos, as atividades fora de casa, às vezes ajudando os próprios pais em seus delitos, e, por fim, participar das aulas, principalmente daquelas em que o professor lhes dirigisse a fala respeitosa, que lhes elevasse a auto-estima.”
O tom altamente entusiasmado do texto não deixa dúvida: Sueli Monteiro exalta o modo de vida da gangue e trata com o mesmo respeito e até alegria, ações como “rir”, “brincar” ou “alimentar-se” e “acertar as contas com quem lhe incomodava”, como se estivessem todas no mesmo nível moral. E ao descrever os problemas familiares dos alunos da gangue, coloca em pé de igualdade a “bolinação incestuosa” sofrida por uma menina, o cuidado de outra com os irmãos menores e a participação do filho nos atos delituosos dos pais. Ora, que educadora é essa que não consegue perceber a notória diferença entre atos lícitos e ilícitos, entre vítimas e algozes, entre o certo e o errado?
Notem que a gangue que ela estudou tinha cerca de 200 membros, como ela própria informa na tese. Mesmo assim, sempre que professores e diretores falam do estrago que a gangue causava na escola, depredando o prédio e impondo o medo entre alunos e professores, Sueli Monteiro pôe em dúvida essa fala dos docentes. Ora, uma gangue de 20 alunos já seria um problema gravíssimo em qualquer escola do mundo, imagine uma com 200, ainda por cima na escola brasileira, onde a criminalidade se acoberta sob o manto do famigerado Estatuto da Criança e do Adolescente. Não eram os próprios membros da gangue descrita por Sueli Monteiro que diziam para os professores, quando eles ameaçavam chamar a polícia: “Pode chamar, somos de menor”?
Na verdade, Sueli Monteiro faz essa defesa da gangue conscientemente, pois é discípula do sociólogo francês Michel Maffesoli, um dos mais destacados ideólogos do crime na atualidade. Tudo o que representa a destruição da sociedade constituída, Maffesoli defende, sob a capa conceitual do “dionisíaco”, no que é literalmente copiado por Sueli Monteiro. Que fizessem isso num livro de poesia publicado à sua própria custa, compreende-se. A arte é livre. Mas é inadmissível que uma professora brasileira, funcionária do Estado, com tese defendida em escola pública, conseqüentemente financiada por todos nos, se comporte como advogada de gangues de rua. Pais e mães sofridos que lhe pagam o salário concordariam com isso, se soubessem o que gente como ela defende para a educação de seus filhos?
É óbvio que, nessa escola estudada por Sueli Monteiro, a maioria dos alunos eram filhos de pais trabalhadores de periferia, que, ao matricular seus filhos numa escola pública, esperam que ela, além de lhes ensinar português e matemática, não corrompa os princípios morais que eles levam de casa, como o respeito aos mais velhos e o reconhecimento do trabalho e do estudo como meios legítimos de crescer como cidadão. Mas Sueli Monteiro não quer saber das preocupações educacionais de uma família comum. Tudo isso, na sua mente, é conservadorismo. Por isso, as vítimas da gangue que estudou são sempre um detalhe em sua tese:
“Esses adolescentes viviam uma relação dúbia com o perigo. Colocavam-se na posição de vítimas e, ao mesmo tempo, amalgamavam-se, reconheciam-se na gangue que intimidava o bairro. Aliavam-se numa cumplicidade aterrorizada, dizendo: ‘Quem não está dentro está fora, e corre perigo’. Temiam e idolatravam os ‘marginais’ ao mesmo tempo, porque eles tinham a coragem para afrontar a ordem vigente e para se rebelar contra a falta de direitos que o cidadão do bairro enfrentava. Tornavam-se violentos, marginais, para ganhar uma identidade entre os seus, para serem reconhecidos e temidos a fim de combater o próprio temor subterrâneo que os dominava: a certeza da morte mais próxima e mais certa do que para outros garotos. Muitas vezes, escutei histórias tristes, de horror, vividas ou provocadas por eles; outras vezes, muito me diverti com suas anedotas pitorescas e pude colorir meus olhos com toda aquela sincronia corporal que lhes permitia parecer um só corpo. Quem não os conhecesse e os visse dançando, se resvalando, pensaria logo que estavam festejando algo especial. Estavam mesmo. Festejavam aquele precioso momento, em que o ‘estar-junto’ se tornava o fato mais importante de suas vidas.”
Ela passa por cima das “histórias de horror provocadas por eles” para exaltar o “estar-junto”, que, segundo ela, é o “fato mais importante de suas vidas”. Parece não perceber que essa obsessão grupal é fator que potencializa a violência das gangues. Tanto que membro de gangue não tem código de honra. Nunca briga sozinho, mesmo quando o adversário é um só. Seu prazer é juntar-se em bando, feitos hienas, e trucidar, dilacerar, massacrar o adversário solitário. Será que a doutora da USP não sabe disso? Nâo lê jornal, não olha ao redor, não depara com essa bárbara covardia das gangues? Sueli Monteiro fala das gangues como se elas não agissem dessa forma e se limitassem à festiva “dança de corpos” que tanto a deslumbrou. Para ela, a violência da gangue é um verdadeiro ritual religioso, do qual ela se dispõe a ser a sacerdotiza:
“Recuperar as identidades culturais, grupo a grupo, pelo levantamento de suas vivências, quer seja através da história oral, da música, da dramatização ou da poesia da alma, que epifaniza a tragédia e a comédia contidas no fenômeno da violência, tem me mostrado que isso ajuda a estabelecer elos de solidariedade e de recomposição da socialidade. Essas atividades, tão simples de serem organizadas por qualquer educador bem intencionado, desde que arroladas a um planejamento global das atividades escolares, permitem emergir os processos inconscientes; aqueles que geralmente levam as pessoas a tomar atitudes aparentemente incompreensíveis aos olhos dos outros. Vivenciar, principalmente através da dramatização, os processos de violência e de sua transgressão permite que os mesmos sejam reordenados de tal forma que se tornem compreensíveis.”
Só uma ciência moralmente espúria e cognitivamente insana pode comprazer-se na “epifania da tragédia e da comédia da violência”, ainda mais entre pessoas em formação, no caso, os jovens de escola pública. Que comédia pode haver na violência a não ser para um voyeur sociopata? Desde quando dramatizar a violência para melhor compreendê-la ajuda a acabar com ela? O cinema, a televisão, o teatro, que fazem esse tipo de dramatização há décadas, provam exatamente o contrário: quando mais se dramatiza a violência, sem combatê-la, mas ela se torna natural e se banaliza, tornando as pessoas insensíveis. Se uma Sueli Monteiro começa a achar explicação e até justificativa para o estupro de horda e estimula o professor a dramatizar em sala de aula as vivências dos que o praticam, o que se pode esperar dos demais adolescentes senão que considerem o estupro como algo, senão normal, ao menos indiferente?
Por outro lado, reparem na crítica implícita a todo professor que porventura não concorde com as teses da pesquisadora. Sueli Monteiro sustenta que fazer da violência uma epifania, através da música, da história oral e de outras atividades do gênero, são “tarefas tão simples de serem organizadas por qualquer professor bem-intencionado”. Logo, quem não consegue fazer o que ela propõe é mal-intencionado. Como se aluno de gangue estivesse sempre disposto a participar das atividades propostas pelo professor. É claro que participaram das que foram propostas pela própria Sueli. Ela era novidade na escola. Se fosse professora regular deles, seria muito diferente.
Confesso que gostaria de ver essa senhora tomando ônibus para trabalhar à noite numa escola de periferia do Entorno de Brasília, dos morros cariocas ou de alguma favela do Nordeste. Uma coisa é ser doutora da USP, ganhar muito bem como professora vitalícia de universidade pública e ter como esporte o culto da delinqüência em teses universitárias. Outra coisa é ter de enfrentar o marginal todo dia como ganha-pão, suportando calado xingamentos cotidianos, sob pena de ser espancado caso reaja a eles. Se tivesse que passar por isso, se a violência fosse o seu verdadeiro trabalho e não um passatempo mental, para encher o vazio de seu cérebro, tenho certeza que Sueli Monteiro pararia de vivenciar epifanias na violência.
Aliás, epifania é manifestação divina. Logo, epifania da violência é o que os nazistas sentiam ao queimar judeus. Só nazistas — e não professores e alunos verdadeiros — são capazes de vivenciar epifanias com a violência, ou seja, divinizá-la.