Por Alexandre Barros
Estou atônito com o preciosismo das regras que regerão a correção das redações do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Os burocratas que as elaboraram violaram duas regras básicas: primeira, ninguém é obrigado a seguir a política dos direitos humanos do governo, salvo no que for regulado por lei; segunda, a ciência de hoje é a mentira de amanhã.
Se o governo gosta de algumas proposições, como direitos humanos, que as defenda nos lugares apropriados. Mas obrigar que todos marchem na mesma cadência é totalitarismo. Aprendemos isso estudando história.
Entendo que os direitos humanos sejam defendidos com toda a ênfase, mas de maneira nenhuma que a sua defesa contamine a suposta mensuração do conhecimento da língua portuguesa pelos alunos. Se o governo quer avaliar os direitos humanos por meio do Enem, que crie uma prova para isso, não contrabandeie suas preferências ideológicas para uma prova de linguagem. Faça como fizeram os governos militares, que criaram uma disciplina específica para difundir a sua ideologia, Educação Moral e Cívica.
Todos os estudantes têm o direto essencial de pensar como quiserem, da maneira que bem entenderem e por suas próprias razões. Boicotar voluntariamente pessoas, produtos e empresas por não concordarem com o que gostamos é uma coisa. Reprovar alunos é outra.
Vou entrar agora em terrenos movediços. Mas não tomarei partido de nenhum deles, por enquanto.
Devemos ou não ter cotas raciais para escolas, empregos, etc.? As pessoas devem ou não ter o direito de adotar o comportamento sexual que bem lhes aprouver? Os mórmons devem ou não ter o direito legal de constituir famílias poligâmicas? Os judeus devem ou não ter o direto de “mutilar” seus filhos pela circuncisão religiosa (um tribunal alemão decidiu recentemente que não o podem fazer)?
A resposta para todas essas perguntas é sim, desde que ninguém seja obrigado a participar. E mais: o que são direitos e o que não são mudam no tempo e no espaço. O terreno fica ainda mais pantanoso porque entramos no direito de livre-pensar e de livre-agir das pessoas em função de suas crenças.
Quaisquer direitos, quando entraram na agenda política, foram considerados subversivos em muitos lugares. O voto feminino, por exemplo, é uma conquista muito recente das democracias modernas.
Esquecemo-nos de que vivemos com invenções que tornaram nossa vida melhor porque houve muitos excêntricos que se recusaram a pensar conforme as crenças dominantes em sua época. Por causa disso muitos foram processados, queimados em fogueiras, torturados, asfixiados em câmaras de gás, forçados a mudar-se de sua terra natal ou, pura e simplesmente, exterminados.
Os excêntricos violam regras existentes. Uma coisa tão simples como os germes só foi descoberta em 1847, quando o dr. Ignaz Semmelweis, médico do Hospital Geral de Viena, percebeu que havia um número muito maior de mortes resultantes de infecção pós-parto entre parturientes que haviam sido atendidas por médicos e estudantes de medicina do que entre as atendidas por parteiras. Ora, isso ia contra o senso comum. A crença era de que médicos e acadêmicos eram mais competentes que parteiras curiosas.
Semmelweis desafiou o senso comum, foi investigar por que isso ocorria e fez uma revolução na medicina e na ciência. Os acadêmicos saíam das mesas de autópsia para as salas de parto e, sem lavar as mãos, contaminavam as parturientes com os germes, até então desconhecidos. O que seria da nossa vida se alguém não tivesse contrariado o pensamento dominante?
Se levarmos isso para a política, veremos que muitas conquistas se devem a pensamentos que contrariaram as noções dominantes. Se assim não fosse, não teríamos República, democracia, ausência de escravidão, fim de ditaduras e muitas outras coisas valiosas.
Precisamos tomar cuidado com o a febre do “testismo” que está contaminando a educação brasileira, em que um bando de supostos sábios estabelece regras ridículas para corrigir algo tão simples como uma redação. Isso gera empregos para testadores e professores desempregados, mas, na realidade, mede muito pouco, ou nada, da criatividade das pessoas. Afinal, criatividade parece ser a grande qualidade de que a economia brasileira precisa: inovadores que se atrevam a pensar diferente.
Quem sabe, surgirão ideias novas nessas redações. Todavia a preocupação de ser condenado pelo resto da vida com uma nota baixa no Enem inibe imensamente o potencial criativo dos estudantes. E não há de ser um bando de burocratas que medirá isso. Porque a única coisa que burocratas medem, e com muita eficácia, é o tamanho de seus salários.
Insisto em lembrar que a ciência de hoje é a mentira de amanhã. Não fosse isso, não teríamos ido à Lua. Creia o leitor ou não, na minha juventude (e fui parcamente educado numa escola religiosa) circulava uma revista que tentava passar ideologia religiosa por intermédio de histórias em quadrinhos. Numa delas, um viajante espacial, parecido com o herói dos quadrinhos convencionais Flash Gordon, ia em sua nave em direção a outro planeta. Subitamente, era cegado por uma luz muito forte e “entendia” que alguma força superior lhe estava dizendo que era a hora de voltar para a Terra e desistir de viagens interplanetárias… Isso foi em meados dos anos 1950.
Como estaríamos hoje sem os visionários e sem todos aquele que tiveram a coragem de desafiar leis e determinações de governos?
Em tempo: sou totalmente a favor dos direitos humanos, mas totalmente contrário a que o Estado use a sua mão de ferro para, disfarçadamente, medir ideologia numa prova que deveria apenas julgar a capacidade de um candidato de dominar a língua portuguesa.
Fonte: O Estado de S. Paulo, edição de 6 de agosto de 2012