Por Miguel Nagib
Quem leu na ConJur a reportagem de Marcos de Vasconcellos sobre o Projeto de Lei 867/2015 — que inclui entre as diretrizes e bases da educação nacional o Programa Escola sem Partido — não corre o menor risco de entender o que está em discussão no Congresso Nacional.
Trata-se de uma proposta legislativa inspirada num anteprojeto de lei de minha autoria, cujo principal objetivo, omitido pela reportagem, é tornar obrigatória a afixação em todas as salas de aula do ensino fundamental e médio de um cartaz com o seguinte conteúdo:
DEVERES DO PROFESSOR
I – O Professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária.
II – O Professor não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas.
III – O Professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas.
IV – Ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, o professor apresentará aos alunos, de forma justa — isto é, com a mesma profundidade e seriedade —, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito.
V – O Professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.
VI – O Professor não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula.
Segundo a reportagem, o PL 867/2015 é inconstitucional, na medida em que fere a liberdade de expressão do professor: “por ter liberdade de ensino garantida [pelo artigo 206, II, da CF], o professor não perde o direito à liberdade de expressão, que não pode ser suprimido de nenhum brasileiro”.
Ora, é evidente que o professor, enquanto cidadão, não pode ser privado da sua liberdade de expressão. A questão é saber se ele desfruta dessa liberdade no exercício de suas funções, dentro da sala de aula. Vejamos.
O direito à livre manifestação do pensamento está previso no artigo 5º, IV, da Constituição Federal; e ele consiste, basicamente, na liberdade que tem o indivíduo de dizer qualquer coisa sobre qualquer assunto. É a liberdade que se exerce no Facebook, por exemplo. Bem, não é preciso ser um grande jurista para perceber que, se o professor desfrutasse dessa liberdade em sala de aula — isto é, no exercício do seu cargo ou função —, ele não poderia ser obrigado a transmitir aos alunos o conteúdo da sua disciplina. O professor de química poderia usar suas aulas — isto é, o tempo todo de suas aulas — para falar de futebol, cinema, literatura, ou simplesmente ficar em silêncio, já que a liberdade de expressão compreende o direito de não se expressar. A simples existência dessa obrigação de transmitir aos alunos o conteúdo da sua disciplina — sem a qual não existiria aquilo que conhecemos como “ensino” — já demonstra que o professor não desfruta e não pode desfrutar de liberdade de expressão em sala de aula.
Mas há mais. Em sala de aula, o professor se dirige a uma audiência cativa. A presença dos alunos em sala de aula é obrigatória por força de lei. Os alunos são obrigados a escutar o discurso do professor — e a escutar com atenção, pois poderão ser cobrados a respeito. Por isso, reconhecer ao professor o direito à liberdade de expressão dentro da sala de aula equivale a reconhecer-lhe o direito de obrigar seus alunos a ouvi-lo falar e opinar sobre qualquer assunto. De novo, não é preciso ser um luminar do Direito para concluir que, se isso fosse possível, a liberdade de consciência e de crença dos alunos seria letra morta. Nada poderia impedir um professor católico ou evangélico de usar suas aulas para catequizar os alunos ou um professor marxista de tentar convencê-los de que a religião é o ópio do povo.
Bem por isso, o que a Constituição garante ao professor — e não haveria nenhum motivo para fazê-lo, se o direito à livre manifestação do pensamento pudesse ser invocado na sala de aula — é a liberdade de ensinar.
Como se vê, os estudiosos do Direito Constitucional que acusam o PL 867/2015 de impor a censura aos professores não apenas confundem deploravelmente liberdade de ensinar com liberdade de expressão, como supõem que a liberdade de ensinar confere ao professor o direito de se aproveitar da presença obrigatória dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções e preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias; o direito de fazer propaganda político-partidária em sala de aula; o direito de omitir dos alunos o outro lado de questões controvertidas que lhes sejam ensinadas; e o direito de dizer aos filhos dos outros o que é a verdade em matéria de religião e de moral.
Chamo a atenção do leitor para um detalhe significativo: na reportagem da ConJur a palavra “liberdade” aparece 13 vezes, mas nenhuma dessas ocorrências se refere à liberdade de consciência e de crença. Os juristas consultados manifestaram sua preocupação com a liberdade de expressão e de opinião do professor, com a liberdade de ensino, com a liberdade de cátedra, e com a “liberdade de formulação dos pressupostos do pensamento”, mas ninguém se interessou pela liberdade de consciência e de crença do estudante, que é justamente a parte mais fraca na relação de ensino-aprendizagem.
Manifestando-se sobre o projeto, o ex-presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) optou, ao que parece, pela falácia do espantalho. Segundo o Marcus Vinícius Furtado Coêlho, “além de inconstitucional, é desumano exigir que o professor seja um autômato dentro da sala de aula.” É claro que é! Mas quem disse que o PL 867/2015 faz isso?
Logo em seguida, no entanto, Furtado Coêlho ameniza prudentemente o tom: “Nem tanto ao mar nem tanto à terra. [É necessário] assegurar a liberdade de opinião do professor desde que tal [liberdade] seja exercida sem impor ao aluno determinada ideologia”. Bravo! É disso que se trata no PL 867/2015! O que ali se proíbe é o abuso da liberdade de ensinar, e não o seu legítimo exercício, que compreende o direito do professor de opinar sobre os temas que constituem o objeto da sua disciplina e do seu plano de ensino, mas não o de “fazer a cabeça” dos alunos.
Lenio Streck também foi duro: “Quem quer fazer escola desse modo deve ir para o canto da sala e ficar de castigo e depois ir para a lousa e escrever cem vezes: a escola deve ser pluralista. E nisso está incluído o ‘risco’ de ter um professor de esquerda… Ou de direita”.
Ora, de que diabos Lenio Streck está falando? Do PL 867/2015 que não é! Afinal, esse projeto estabelece, com todas as letras, que “ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, o professor apresentará aos alunos, de forma justa — isto é, com a mesma profundidade e seriedade —, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito.” Ao explicitar esse dever do professor, o PL Escola sem Partido visa a assegurar precisamente o pluralismo de ideias em sala de aula.
Pouco importa que o professor seja de esquerda ou de direita! O que ele não pode é desrespeitar a liberdade de consciência e de crença e a liberdade de aprender dos alunos (artigo 5º, VI e VIII; e artigo 206, II, da CF), o princípio constitucional da neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado (artigos 1º, V; 5º, caput; 14, caput; 17, caput; 19, 34, VII, ‘a’, e 37, caput, da CF), o pluralismo de ideias (artigo 206, III, da CF) e o direito dos pais dos alunos sobre a educação religiosa e moral dos seus filhos (Convenção Americana sobre Direitos Humanos, artigo 12, IV).
Já o professor de Direito Constitucional da PUC-SP, Pedro Estevam Serrano, afirma que “ao usar termos vagos como ‘preferência política’ [embora o PL 867/2015 não utilize essa expressão], o projeto pode levar à interdição do próprio conhecimento”. E exemplifica: “Falar de marxismo em sala de aula, por exemplo, pode ser tido como preferência política, mas como falar do mundo contemporâneo e suas formações políticas e culturais sem falar de marxismo?”
Devo dizer ao ilustre professor que, nesse caso, a inconstitucionalidade não seria da lei, mas da sua aplicação a uma situação em que ela não deveria incidir. Com todas as vênias, o risco de que uma lei venha a ser mal aplicada é inerente a todas as leis. É um risco que obviamente não depõe contra a validade da lei.
Aos críticos do PL 867/2105 eu recomendo que avaliem também a constitucionalidade do artigo 117, V, da Lei 8.112/90, que prescreve:
“Art. 117. Ao servidor é proibido: V – promover manifestação de apreço ou desapreço no recinto da repartição;”
Será que esse dispositivo também viola a “liberdade de expressão” dos servidores públicos?
É preciso reconhecer, entretanto, que o PL 867/2015 padece, efetivamente, de uma inconstitucionalidade — uma só: ao dispor que é vedada em sala de aula “a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”, o artigo 3º poderia impedir a abordagem de conteúdos científicos ou factuais em sala de aula, o que seria, além de indefensável do ponto de vista educacional, incompatível com a Constituição. Esse vício, porém — que já foi eliminado do nosso anteprojeto de lei (disponível em www.programaescolasempartido.org) — poderá e deverá ser corrigido durante tramitação do projeto, até mesmo com a supressão desse artigo, que não fará a menor falta à proposta: o que interessa é o cartaz com os deveres do professor.
Pois bem. Se esses deveres existem — e eu desafio os ilustres juristas ouvidos pela reportagem a demonstrar o contrário —, os estudantes têm direito de saber. É só esse o objetivo do PL 867/2015: informar os alunos sobre a existência daqueles deveres, a fim de que eles possam conhecer e defender os direitos que lhes correspondem, já que dentro da sala de aula ninguém mais poderá fazer isso por eles.
Revista Consultor Jurídico, 24 de junho de 2016, 14h20