Site do MEC privilegia autores de esquerda

Reportagem do jornal O Globo, edição de 20 de dezembro de 2004.

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Dos 166 títulos que compõem a seção de ciências sociais, 86 são sobre ou de intelectuais de esquerda

Gustavo Alves

Um espectro ronda a seção de ciências sociais do site “Domínio Público”, criado pelo Ministério da Educação para dar acesso grátis a textos, imagens e músicas consideradas clássicos da cultura – o espectro do esquerdismo, que Vladimir Lênin definiu como “a doença infantil do comunismo”. Dos 166 títulos que compõem esta parte da biblioteca, 86 são sobre ou de intelectuais de esquerda. Autores considerados clássicos da ciência política que defendem idéias de outras correntes políticas não estão presentes.

Clássicos como Emile Durkheim e Alexis de Tocqueville ainda não estão catalogados. Mas há pelo menos 21 textos do fundador do socialismo científico, Karl Marx, nove de seu colaborador Friedrich Engels, e quatro assinados pela dupla. Os revolucionários comunistas Vladimir Lênin e Leon Trotsky, respectivamente, são representados com 12 e 15 textos.

– É uma indigência com uma distorção marxista – diz o cientista político Fábio Wanderley Reis, da UFMG.

Em uma consulta com o nome “Marx” achou 60 títulos de ou sobre ele. Mas não viu nada de Max Weber, o sociólogo alemão autor de “A ética protestante e o espírito do capitalismo”.

Tratados do inglês John Locke não são encontrados

Com tal seleção, quem for buscar no “Domínio Público” as idéias de John Locke, o filósofo inglês que refutou o direito divino dos reis e o primeiro a lançar as idéias em que se estabeleceram os governos democráticos atuais nos seus dois “Tratados sobre o governo civil”, vai se decepcionar. Em compensação, há três textos de Nahuel Moreno, teórico argentino e um dos principais inspiradores do neotrotskista PSTU.

Mas não se pode dizer que outras correntes não apareçam. Há textos do historiador Plutarco, do senador romano Cícero, do filósofo francês René Descartes e do positivista francês Auguste Comte.

A abundância de textos de autores comunistas pode ser explicada pela facilidade de acesso: a reprodução foi possível pela compra de quatro CDs pelo Marxists Internet Archives, biblioteca virtual de obras comunistas, socialistas e anarquistas, explica o assessor de Tecnologia e Informação do MEC Espártaco Madureira. Ele informa que foi lançado edital para aumentar o acervo em 2005.

– O portal tem só 1.015 obras casdastradas. O objetivo é ter 100 mil – diz.

Professor do Iuperj diz que governo usa o que é possível

Para José Eisenberg, professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), acusar o portal de ser um instrumento de doutrinação de esquerda é falacioso.

– Como você está falando sobre traduções que tenham de ser de domínio público, seria precipitado e tendencioso achar que há um viés ideológico – defende. – Dadas as restrições, o governo federal está usando aquilo que é possível.

Mas a justificativa de Eisenberg não convence a professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Antônia de Lourdes Colbari.

– Não é porque o texto está disponível que tem de estar no portal. O MEC é uma referência, não pode ter só esse critério.

TÍTULOS DO PORTAL

QUEM ENTROU

KARL MARX (1818-1881): Economista e filósofo, intelectual de maior influência na esquerda e no debate político do século XX, autor de “O capital”, com Friedrich Engels (1820-1895).

PAUL LAFARGUE (1842-1911): Genro de Marx, é representado no site com a obra que lhe deu mais notoriedade: “O Direito à preguiça”.

VLADIMIR ILIYTCH LÊNIN (1870-1924): Líder da revolução russa, formulou a idéia de que o socialismo poderia vir não da falência natural e inevitável do sistema capitalista, mas por uma revolução executada por um partido organizado revolucionário.

LEON TROTSKY (1879-1940): Parceiro de Lênin na execução da Revolução Russa, organizador do exército soviético, exilado após perder a disputa pelo poder com Joseph Stálin na URSS, foi assassinado no México a mando deste. Autor da teoria da “revolução permanente”, que pregava movimentos em todos os países para implementar o comunismo.

ROSA LUXEMBURGO (1871-1919): Antes de ser fuzilada por paramilitares a serviço do governo alemão, a revolucionária nascida na Polônia brigou com Lenin e Trotsky sobre como chegar ao socialismo e mantê-lo. Chamou a atenção para o risco de os movimentos socialistas se afastarem do proletariado pela ação de burocratas.

NAHUEL MORENO (1924-1987): Ideólogo argentino, uma das principais influências do neotrotskista PSTU.

CHE GUEVARA (1928-1967): Um dos líderes da guerrilha que levou Fidel Castro ao poder em Cuba.

QUEM FICOU DE FORA

EMILE DURKHEIM (1858-1917): Filósofo e sociólogo francês. Apesar de Auguste Comte ser considerado o fundador da sociologia, foi graças a Durkheim que ela passou a ser praticada e reconhecida com objeto, método e objetivos claros e definidos.

MAX WEBER (1864-1920): Economista e sociólogo alemão, autor do clássico da sociologia “O espírito protestante e a ética do capitalismo”, em que defende que a ética e as idéias dos protestantes, especialmente do calvinismo, influenciaram o desenvolvimento do capitalismo.

ALEXIS DE TOCQUEVILLE (1805-1859): Descendente de uma família aristocrata que foi quase toda dizimada na Revolução Francesa, ele também estudou o movimento. Em “O antigo regime e a revolução”, Tocqueville mostrou a influência que os intelectuais podem ter, ao comentar como os “philosophes” do século XVII ajudaram a enfraquecer a monarquia.Seu livro mais estudado é “Democracia na América”.

THOMAS HOBBES (1588-1679): Outro clássico do pensamento político, por sua obra “O Leviatã”. Nela, ele defende que, em seu estado natural, os homens vivem em permamente guerra – daí a necessidade de um Estado forte que medie estes conflitos.

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