“[A] pedagogia, como é hoje considerada, está desligada do saber, pretende substituí-lo e ocupar o seu lugar. A ‘pedagogia’ tem um aspecto social: atrai o intelectual proletaróide, prometendo-lhe uma revanche contra o competente e o sábio.” (Alain Besançon, prefácio de A Escola dos Bárbaros, de Isabelle Stal e Françoise Thom)
Foi o filósofo Gilbert Ryle quem cunhou o termo “erro categorial” (category-mistake). Comete-se um erro categorial quando se atribui a um ente uma propriedade que, por sua própria natureza, ele jamais poderia ter.
Para ilustrar o fenômeno, Ryle imagina uma pessoa comum, pouco afeita ao universo acadêmico, visitando Oxford pela primeira vez. Chegando lá, essa pessoa indagaria sobre a localização exata da universidade, imaginando vir a obter uma resposta do tipo: “É logo ali, ao lado da sala dos professores”. Ao conceber a “universidade” como uma edificação específica, e não como o conceito funcional que abarca todas os setores que a integram, a pessoa teria cometido um erro categorial.
As crianças são mestras na produção de divertidíssimos erros categoriais. Temos um erro categorial clássico quando, por exemplo, um pequeno queixa-se a um móvel no qual acabou de bater a cabeça: “Sua mesa malvada!”. Mas os erros categoriais infantis mais curiosos costumam ter a ver com confusões ou reinações sinestésicas. “Qual é o gosto da cor verde?”, “Qual é a cor do seu nome?”, “O número 6 é muito barrigudo, tia.”
Nas crianças, o erro categorial faz parte de seu desenvolvimento cognitivo natural. Já em adultos, o fenômeno pode indicar um certo lapso de inteligência, embora homens intelectualmente brilhantes não lhe sejam imunes (para Ryle, era o caso de Descartes). Ressalve-se, claro, que o erro categorial só se caracteriza no âmbito do discurso literal, denotativo. O uso consciente e figurado da sinestesia ou de outras “más” atribuições de propriedade não constitui erro algum, evidentemente.
O tema deste post é um erro categorial tragicômico: a matemática opressora.
Sim, no Brasil, era fatal que a luta de classes chegasse até esse ponto. E o pior: o erro não parece ser fenômeno isolado, nem, muito menos, escandaloso. Ao contrário, cometê-lo, cá em Pindorama, pode conferir a quem o faz o título de doutor naquela que é classificada como a melhor universidade do país.
Creia, leitor, mas a matemática opressora é tema de uma tese de doutorado intitulada Paulo Freire e Ubiratan D’Ambrosio: Contribuições para a Formação do Professor de Matemática no Brasil, defendida na faculdade de educação da USP. Eis o resumo do trabalho, que, por ora, diz tudo o que precisamos saber:
“Nossa investigação é uma pesquisa teórica de cunho histórico-filosófico-educacional, que tem como objetivo principal discutir as contribuições de Paulo Freire e de Ubiratan D’Ambrosio para a formação do professor de matemática no Brasil. A dialética e as técnicas de análise de conteúdo constituem a metodologia adotada. Desse modo, nos impusemos como tarefa analisar a formação do professor de matemática de modo contextualizado com a nossa realidade social atual e reconstituindo a função histórica que a nossa escola e a formação docente desempenharam como reforçadora das desigualdades sociais e mantenedoras do status quo da sociedade capitalista. No levantamento histórico, utilizamos as contribuições de G. Freyre, S. B. de Holanda, C. Prado Júnior, L. Basbaum, C. Furtado, F. de Azevedo, J. K. Galbraith, O. de O. Romanelli, A. Teixeira, entre outros. E, em nossa análise, nos valemos das contribuições de K. Marx, F. Engels, A. Gramsci, M. Chauí, L. Althusser, J. Contreras, O. Skovsmose A. Ponce, M. Gadotti, K. Kosik e outros referenciais próprios da área. A formação do professor de matemática é vista como resultado de um processo histórico-cultural que mantém ainda uma forte herança de elementos de uma sociedade colonial, corroborado pela não participação democrática do povo brasileiro em seu processo de constituição sócio-cultural numa sociedade capitalista e excludente. E o trabalho demonstra que os atuais processos de formação de professor de matemática ainda são fortemente sedimentados numa formação alienada aos ditames de uma sociedade de classes, que não permite ao futuro professor compreender e fazer uso da necessária autonomia inerente à sua atuação, o que o faz atuar como um intelectual orgânico a serviço da consolidação da hegemonia da classe dominante. Nesse sentido, os constructos teóricos de P. Freire e de U. D’Ambrosio mostram-se como indicadores de encaminhamentos possíveis no processo de formação de um professor de matemática crítico/libertador e, por isso, consciente de sua tarefa como agente ativo na formação de um educando não especialista em matemática, mas inserido em sua realidade social como um sujeito transformador e em transformação, que encontra na matemática uma ferramenta para o processo dialético de sua própria construção. Assim, a investigação indica a necessidade de uma atuação dos formadores no sentido de conscientizar os futuros professores de matemática de sua tarefa como intelectuais orgânicos a serviço da construção da hegemonia dos excluídos, dos explorados em geral. Ou seja, a investigação aponta a necessidade de a formação inicial se constituir como um antidiscurso ao discurso ideológico da classe dominante” (grifos meus).
Temos aí um exemplo típico de trabalho acadêmico que pedagogos e educadores têm produzido atualmente no Brasil. A tese deve ter sido aprovada com honrarias e louvores. São pessoas como o seu autor as que ditam os rumos de nossa política educacional, ocupando cargos no MEC, ou em secretarias estaduais e municipais de educação. São elas quem formam os professores brasileiros e, pois, deformam os nossos estudantes.
Compreende-se, pois, porque os alunos brasileiros ocupam as últimas posições nos testes internacionais. No último PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), por exemplo, divulgado em abril deste ano, o Brasil ficou em 38º colocado entre 44 participantes de uma avaliação de matemática e raciocínio lógico. “Os estudantes brasileiros têm sérias dificuldades para resolver problemas de matemática aplicados à vida real”, conclui uma reportagem sobre o caso (ver aqui).
Do ponto de vista dos pais desses estudantes, e da sociedade em geral, o fenômeno é certamente assustador. Mas, do ponto de vista dos pedagogos e educadores brasileiros, não parece haver grandes problemas no resultado do PISA, uma vez que – diz com todas as letras o autor da tese acima citada – o objetivo do professor de matemática é formar um educando “não especialista em matemática (sic), mas inserido em sua realidade social como um sujeito transformador e em transformação” blá blá blá…
Claro está, então, que o objetivo da pedagogia brasileira, do MEC e das secretarias locais de educação, não é o mesmo que o dos pais e o restante da sociedade. Eis o grande problema da educação brasileira, que precisamos começar a compreender e enfrentar: enquanto a sociedade espera que os professores ensinem matemática, português, ciências etc. ao estudantes, os profissionais que formam os professores não estão interessados em nada disso. Para eles, aquelas disciplinas servem tão somente como meios para a doutrinação de crianças e jovens no discurso comunista (em versão gramsciana) da luta de classes. “A pedagogia é a propedêutica do socialismo”, escreve acertadamente Alain Besançon no texto referido em epígrafe.
Que assim seja confessa o próprio pedagogo da USP, para quem a sua missão é “conscientizar os futuros professores de matemática de sua tarefa como intelectuais orgânicos a serviço da construção da hegemonia dos excluídos”. E você aí pensando, caro e ingênuo leitor, que a tarefa do professor de matemática fosse ensinar a fórmula de Báskara…
Escreve Ortega y Gasset em Misión de la Universidad: “Princípio de educación: la escuela, como instituición normal de un país, depende mucho más del aire público en que íntegralmente flota que del aire pedagógico artificialmente producido dentro de sus muros. Sólo quando hay ecuación entre la presión de uno y otro aire la escuela es buena”.
No Brasil, há um desencontro total entre o “ar público” e o “ar pedagógico artificialmente produzido dentro dos muros escolares”. Logo: acá la escuela no es buena. A sociedade como um todo optou por abdicar da educação infantil, delegando a missão para os “especialistas” em pedagogia, e conferindo a estes um prestígio – e, portanto, um poder – totalmente imerecido e desproporcional. Todos parecem concordar com a fórmula mágica “mais verba para a educação!”, desatentos para o fato de que ela implica mais pedagogia e, pois, menos matemática, português, ciências e demais disciplinas “opressoras”.
Lavamos as mãos, confiando que a meta dos “especialistas” correspondia aos nossos anseios. Erramos feio, erramos rude! E sói reconhecê-lo com urgência. É preciso acabar com o monopólio que a pedagogia – essa “falsa ciência”, nos dizeres de Besançon – exerce sobre a educação brasileira. Até lá, o nosso mote deveria ser: MENOS VERBA PARA A EDUCAÇÃO! – pelo amor de Deus.
Texto publicado no blog do autor em 20 de dezembro de 2014.