A redação do Poder

Editorial da Folha de São Paulo, edição de 5 de setembro de 2004.

*  *  *

Na prova de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2004, pela primeira vez na história recente, o governo orientou o conteúdo político de uma atividade escolar. O Ministério da Educação nega, mas a evidência é contundente.

No momento em que o governo patrocina o polêmico projeto do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) e Lula e seus ministros denunciam o “denuncismo”, os jovens estudantes foram solicitados a dissertar sobre o tema “Como garantir a liberdade de informação e evitar abusos nos meios de comunicação?”. O suporte para a redação era constituído por uma charge, na qual a TV transfigura-se em lata de lixo, um extrato de texto sobre os programas sensacionalistas, dois extratos favoráveis à auto-regulamentação da mídia e os incisos do artigo 5º da Constituição que proíbem a censura e asseguram a proteção à vida privada e imagem das pessoas.

Nada sobre o valor da liberdade de imprensa na democracia, a importância da fiscalização do governo pela mídia ou a função histórica desempenhada pelos jornalistas na denúncia de episódios de corrupção no poder público. Nenhuma alteridade: uma receita de bolo que, com certeza, gerou milhares de redações semelhantes entre si e involuntariamente parecidas com o discurso emanado do Planalto.

O Enem é a única prova de abrangência nacional aplicada diretamente pelo Ministério da Educação aos alunos do último ano do ensino médio. A maior parte das universidades públicas usa os resultados do Enem na pontuação dos candidatos dos seus exames vestibulares. Por razões óbvias, as escolas públicas e particulares o tomam como referência na estruturação de conteúdos e métodos de ensino. Quando a redação do Enem torna-se uma convocação para que os estudantes reproduzam como papagaios as palavras do presidente da República, professores de todo o país registram o recado.

As instruções contidas na prova do Enem comandam a redação de uma dissertação baseada “nas idéias presentes nos textos acima”, ou seja, na charge e nos extratos cuidadosamente selecionados para gerar um fim político definido.

Qual seria a avaliação atribuída a um candidato que optasse por distinguir os programas sensacionalistas de TV das denúncias de corrupção governamental estampadas na mídia e por mostrar os perigos à liberdade de imprensa inerentes ao projeto do CFJ?

Os regimes autoritários sempre almejaram controlar as idéias veiculadas na escola e promover entre as crianças e jovens os “valores patrióticos”, ou seja, para todos os efeitos práticos, os seus próprios valores e ideologias. Na democracia, o governo tem o dever de promover a educação pública, mas, igualmente, o de respeitar a autonomia pedagógica do processo de ensino. O governo não se confunde com o educador e não pode entrar na sala de aula. A transgressão desse imperativo ético e político pelo Enem configura um perigoso precedente.

Deixe um comentário