Acadêmicos podem sonegar informações?

Por Luis Lopes Diniz Filho *

“The right to search for truth implies also a duty; one must not conceal any part of what one has recognized to be true”. Albert Einstein Memorial, Washington DC.

No dia 28 de maio de 2009, participei de uma mesa-redonda em que foi discutido o documento Ciência, religião e desenvolvimento: perspectivas para o Brasil, o qual fazia uma síntese preliminar do livro de mesmo título. Em minha palestra, apresentei uma série de críticas ao conteúdo do documento, cujas análises e propostas se inspiravam, quase sempre, num pensamento de esquerda pós-modernista que, muito embora se apresente como democrático e defensor da diversidade cultural, é, na verdade, autoritário, preconceituoso e intolerante.

 

Não é o caso de reproduzir aqui todas as críticas que teci contra o texto e os questionamentos que foram feitos à minha fala durante a sessão de debates, já que isso implicaria elaborar um artigo muito longo. Meu objetivo é questionar apenas um dos argumentos expostos pelo professor Iradj Roberto Eghrari, pesquisador do Instituto de Estudos sobre a Prosperidade Global e professor do Centro Universitário Euroamericano – Unieuro.

De fato, a primeira crítica que lancei contra o referido documento é a de que existem pesquisas internacionais que contestam frontalmente uma afirmação feita logo em sua seção introdutória, qual seja, a de que estamos vivendo o século do “aumento da pobreza mundial”. Essa afirmação foi feita sem qualquer referência às fontes que a justificariam, de modo que eu citei dados que demonstram justamente o contrário. De 1981 a 2005, o número de habitantes de países em desenvolvimento que vive com menos de 1,25 dólares por dia, a preços de 2005, caiu de 1,9 bilhões para 1,4 bilhões. Assim, com o grande aumento da população desse conjunto de países no período em foco, o percentual de pobres foi reduzido de aproximadamente 50% para 25%. Uma pesquisa um pouco mais antiga, que fixa a linha de pobreza em um dólar por pessoa por dia, indica que, de 1984 a 2004, o percentual de pessoas com renda inferior a essa nos países em desenvolvimento foi reduzido de 33% para 18%.

Ora, um dos argumentos apresentados pelo professor Iradj no debate que se seguiu foi que a divulgação desse tipo de pesquisa pode levar as pessoas a uma posição de comodismo, isto é, pode levá-las a não atuar politicamente em prol de avanços sociais pelo fato de acharem que tudo já está sendo resolvido. Não rebati esse argumento em particular durante os debates, posto que havia muitas outras ideias a serem refutadas e discutidas. Contudo, é o caso de indagar: será ético um pesquisador e professor ocultar informações do público (e, portanto, dos seus alunos) com o argumento de que eles devem ser induzidos a atuarem politicamente? Não será essa uma forma de manipulação inaceitável para profissionais que devem ter o compromisso de fazer ciência e divulgar conhecimento?

Temos aí um problema ético que ganha maior dimensão se o pesquisador se eximir de dizer o que as estatísticas mostram mesmo quando lê um estudo acadêmico no qual se afirma categoricamente estar havendo “aumento da pobreza mundial” mesmo sem a apresentação de qualquer comprovação empírica. Nesse caso, um pesquisador que se omitir não estará apenas sonegando informações para induzir as pessoas a agirem politicamente, mas colaborando com um engano ou até com uma mentira, ainda que supostamente bem intencionada.

Conforme eu defendi na referida mesa redonda, mentir é, até certo ponto, aceitável quando se trata da luta política, visto que os militantes de partidos, ONGs, sindicatos e “movimentos sociais” usam da retórica para advogar em nome de certas causas políticas, sociais e ambientais. A retórica é um tipo de discurso que visa alcançar objetivos práticos, de sorte que é da sua natureza a elaboração de argumentos e a seleção de evidências de modo a convencer as pessoas da justeza do objetivo em pauta. Mas um cientista social não pode trabalhar com a retórica! A missão do pesquisador não é ser advogado de causas, mas sim advogado da “verdade”. Se a arma dos militantes é a retórica, a função do pesquisador é produzir conhecimento pautado por um compromisso estrito com a coerência do discurso e com a apresentação de evidências que sustentem todas as suas afirmações. Por esse motivo, também não cabe ao professor selecionar informações com vistas a induzir os alunos a agirem como ele deseja, mas sim transmitir a eles conhecimentos científicos. E se é verdade que existem teorias antagônicas para a explicação dos fenômenos (sobretudo nas ciências sociais), isso significa que o professor deve apresentar essa diversidade teórica aos alunos para permitir-lhes refletir autonomamente sobre cada teoria, ao invés de sonegar evidências com o fim de induzi-los a aceitar uma delas.

É claro que, a essas considerações, alguém poderia objetar que o professor Iradj não estava propondo induzir as pessoas a aceitar esta ou aquela teoria ou ideologia, mas apenas omitir algumas informações sobre os avanços sociais ocorridos para levá-las a agir politicamente, sem se importar quais seriam as opções políticas de cada um. Esse argumento seria incorreto por dois motivos. Primeiro porque, se as pessoas acreditarem que a pobreza mundial está aumentando, é óbvio que serão induzidas a aceitar como corretas as teorias e ideologias que lançam os ataques mais radicais ao “capitalismo globalizado”, ao “neoliberalismo” ou ao “modelo ocidental de desenvolvimento”. O segundo motivo é que, se essa visão equivocada levar as pessoas a acreditarem que o comércio internacional e outros processos associados ao contexto da globalização prejudicam a maior parte da humanidade, tenderão a apoiar propostas políticas que visem restringir esses processos que têm permitido tirar centenas de milhões de pessoas da pobreza, bloqueando ou até revertendo tal benefício. Isso significa, literalmente, manipular a opinião pública para que dê apoio a certas políticas que podem ser um tiro no seu próprio pé!

Em suma, pesquisadores e professores só prestam uma contribuição original aos debates públicos quando se recusam a fazer retórica para defender causas e se concentram no esforço de produzir conhecimentos tão objetivos quanto for possível. O uso de métodos tidos como adequados não dá garantias absolutas de que os enunciados científicos são de fato objetivos e neutros em relação a valores e interesses, mas a objetividade e a neutralidade têm de continuar existindo como compromissos que o cientista assume quando elabora e aplica seus métodos de pesquisa. A principal função dos acadêmicos ao participarem dos debates públicos é corrigir as falhas de informação e as mentiras sempre que forem enunciadas, sem se importar com quem as enuncia e nem com quais são os seus objetivos.

* Professor do Departamento de Geografia da UFPR. Email: diniz.ufpr@gmail.com

Fontes:

CHEN, S.; RAVALLION, M. The developing world is poorer than we thought, but no less successful in the fight against poverty. The World Bank, Development Research Group, ago. 2008 (Policy Research Working Paper, 4703). Disponível em: <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1259575> Acesso em: 04 mar. 2009.

FERREIRA, F. H. G; LEITE, P. G.; RAVALLION, M. Poverty reduction without economic growth? Explaining Brazil’s poverty dynamics, 1985-2004. The World Bank, Development Research Group, dec. 2007 (Policy Research Working Paper, 4431).Disponível em: <http:// papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1066223> Acesso em: 04 mar. 2009.

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