As Ciências Humanas na Base Nacional Comum Curricular

Por Bráulio Matos*

“Os ideólogos são ‘terríveis simplificadores’. A ideologia faz com que as pessoas deixem de enfrentar problemas específicos, e de examiná-los à luz dos méritos individuais. As respostas estão prontas, e são aceitas sem reflexão; e quando as crenças são apoiadas pelo fervor apocalíptico, as ideias se transformam em armas, com resultados espantosos.”

                                         Daniel Bell, O fim da ideologia

Boa tarde a todos. Sr. Presidente (dep. Arnaldo Faria de Sá – PTB/SP), muito obrigado pelo honroso convite. Meus cumprimentos aos ilustres Pe. José Eduardo e Prof. Orley José da Silva.

Confesso que hesitei em aceitar o convite, pois não sou especialista em currículo e não usurpo credenciais que não tenho. Entretanto, realizo pesquisas sobre a qualidade psicométrico-pedagógica de testes padronizados, a exemplo do Enade, e um dos critérios para estimar a validade desses testes consiste em saber em que medida eles mensuram o currículo ministrado. A literatura técnica sobre currículo, portanto, não é estranha a minhas preocupações. É oportuno, nesse sentido, observar que o governo parece ter realizado uma inversão injustificada ao avançar na elaboração do EXAME NACIONAL DE INGRESSO NA CARREIRA DOCENTE, um projeto caro ao prof. Mangabeira Unger, antes de promover a reforma curricular ora encetada pela BNCC. Logicamente, não faz sentido recrutar professores com base em um currículo que está sendo alvo de modificações. Seria passar o carro na frente dos bois.

Aceitei o convite também porque minhas pesquisas possuem uma relação sinérgica com a campanha que a associação ESCOLA SEM PARTIDO tem liderado contra a instrumentalização das escolas para fins político-ideológicos. Sou vice-presidente dessa associação e temos todo interesse de evitar que o BNCC venha incorporar e até potencializar o viés ideológico que assola as escolas brasileiras. Cheguei a sugerir nesta casa, ano passado, em audiência pública destinada a debater o projeto sobre “assédio ideológico nas escolas”, de autoria do nobre deputado Rogério Marinho, que o parlamento brasileiro não deixasse a definição da BNCC exclusivamente nas mãos do CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO e dos técnicos do MEC, uma vez que, a princípio, não há razão para acreditar que a “lei de ferro das oligarquias” (Robert Michels) não fustigue também o mundo acadêmico.

Antes de considerar o papel atribuído às CIÊNCIAS HUMANAS na BNCC apresentada, gostaria de dizer que endosso integralmente o questionamento feito pelo prof. João Batista Araújo e Oliveira ao MEC e às elites do país, em documento encaminhado à Comissão de Educação do Senado. Uma resposta clara pelo MEC às quarenta e quatro perguntas formuladas pelo presidente do Instituto Alfa & Beto elevaria consideravelmente o nível do debate sobre a BNCC.

Gostaria até de acrescentar àquela lista uma pergunta bem preliminar: qual é exatamente a relação entre o Art. 210 da Constituição Federal e a BNCC apresentada?

Ocorre que a Constituição Federal, em seu Art. 210, prescreve que “Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum”.

A BNCC apresentada, por seu turno, diz que o documento tem por finalidade “orientar os sistemas na elaboração de suas propostas curriculares”; que “uma base curricular comum, documento de caráter normativo, é referência para que as escolas e os sistemas de ensino elaborem seus currículos.” (p. 24).

Ora, se os estados, municípios e escolas irão elaborar seus próprios currículos, por que falar em BASE NACIONAL CURRICULAR COMUM? Se não há conteúdos curriculares mínimos a serem prescritos para o ensino fundamental como um todo, como reza a Constituição, por que não manter a expressão atual, PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS (PCNs), posto a BNCC apresentada parece caminhar mais nessa direção?

Os elaboradores da BNCC poderão dizer que optaram por prescrever competências e habilidades em vez de listar conteúdos disciplinares, baseando-se no fato de que tais conteúdos mudam rapidamente no mundo contemporâneo e que o desafio maior dos estudantes nesse contexto consiste em aprender a aprender. Entretanto, a BNCC proposta não explicita as bases teóricas e as evidências empíricas que fundamentam essa escolha. Não há nada parecido, por exemplo, com a fundamentação dos níveis de aprendizagem aferidos pelo SAEB e pelo PROVA BRASIL (básico-presentativo; operacional-procedural; e global).

Parece-me que falta certa coerência, portanto, entre o Art. 210 da CF e a BNCC, de sorte a sabermos como e em que medida a base curricular confere efetividade ao preceito constitucional. Nem sempre é fácil distinguir o que são diretrizes, objetos de aprendizagem e conteúdos curriculares específicos nas 651 páginas da BNCC apresentada. Quando se compara o BNCC, por exemplo, com a equivalente base curricular obrigatória do ensino fundamental da Inglaterra, constatamos não somente a maior concisão do segundo documento (300 páginas), mas também maior clareza no enunciado dos objetivos de aprendizagem e foco no conhecimento científico e tecnológico.

Obviamente, seria ridículo de minha parte pontificar aqui sobre o quê minimamente os estudantes brasileiros deveriam aprender em cada uma das quatro tradições disciplinares que compõem as ciências humanas: HISTÓRIA, GEOGRAFIA, FILOSOFIA e SOCIOLOGIA.

Posso argumentar com alguma segurança, contudo, em sintonia com os objetivos do ESCOLA SEM PARTIDO, sobre aquilo que NÃO SE DEVE E NÃO SE PODE FAZER no âmbito do ensino dessas disciplinas escolares: instrumentalizar o ensino escolar para fins político-ideológicos. E, nesse sentido, constato a presença de um claro viés ideológico de esquerda na BNCC apresentada.

Pela exiguidade do tempo, só posso oferecer aqui um indício desse viés, colhido no campo da Geografia (asseguro-lhes que não foi escolhido ad hoc, mas por sua tipicidade).

A citação é longa, mas de suma importância para a melhor compreender o problema. Diz o documento:

“Na Geografia, a compreensão do mundo passa (…) pela compreensão do capitalismo como ordem socioeconômica globalitária, que afeta a configuração dos territórios, produz a intensificação do consumo e a consequente pressão sobre os ambientes, bem como, por meio destes processos combinados, promove desigualdades sociais.” (p. 160)

(…)

Os objetivos de aprendizagem e desenvolvimento do componente abrangem conhecimentos e práticas pedagógicas que articulam trabalho, ciência, tecnologia e cultura na perspectiva da emancipação humana. Contemplam, ainda, processos cognitivos cada vez mais complexos, exigindo dos/as estudantes a organização do pensamento e das formas de compreensão em raciocínios amplos e profundos, desenvolvendo habilidades, comportamentos e disposições como razão, lógica, criatividade, imaginação e inovação, também incentivando a participação dos/as estudantes em mobilizações, movimentos e atividades coletivas. (p. 633).

Um leitor atento perceberá o evidente viés político-ideológico anticapitalista imprimido ao ensino de Geografia nessa passagem. Não se verifica aí o interesse em apresentar as principais controvérsias sobre as economias capitalistas e seus impactos sobre o meio ambiente. Nenhum interesse em assegurar o PLURALISMO DE IDÉIAS tal qual ele se apresenta no campo da geografia na presente quadra histórica (estado da arte).  Eu adoraria saber, por exemplo, como o ideólogo que redigiu o texto acima explicaria os dados da tabela abaixo, elaborada pelo economista Luiz Zottmann (livro no prelo): 

Se a tese de que o capitalismo aumenta a desigualdade social fosse tão categoricamente verdadeira como faz parecer a BNCC, por que São Paulo, o mais capitalista dos estados, apresenta a segunda maior renda per capita da federação e um dos menores índices de desigualdade de renda, ao passo que o Distrito Federal (que pouco tem de capitalista), apresenta a maior renda per capita e o maior índice de desigualdade de renda do país (ao lado dos estados mais pobres da federação)? Os alunos não merecem refletir sobre esses fatos e sobre as controvérsias teóricas que eles suscitam?

Um leitor atento desconfiará, também, que o incentivo aos estudantes para que participem de mobilizações nada tem a ver com a disciplina “Citizenship” constante no currículo mínimo da Inglaterra, um curso que auxilia o aluno a compreender a estrutura e funcionamento do sistema político-governamental do país. Como já ficou definitivamente estabelecido anteriormente que o capitalismo é o principal responsável pelas desigualdades sociais territorialmente manifestas, “logicamente” só resta ao professor de geografia incitar os seus alunos a militar em movimentos sociais anticapitalistas. Para que não se pense que tal interpretação constitui paranoia de minha parte, basta ler o destaque a BNCC confere aos movimentos sociais na apresentação do documento em tópico intitulado “O papel dos Movimentos Sociais na conquista dos direitos de aprendizagem e desenvolvimento”. Cito:

“Os movimentos sociais têm importante papel na definição dos direitos de aprendizagem e desenvolvimento que fundamentam a elaboração da BNCC. O Parecer CNE/CEB nº 11/2010, elaborado pela Câmara de Educação Básica (CEB) do Conselho Nacional de Educação, explicitou a importância dos movimentos sociais para o respeito e a consideração às diferenças entre os sujeitos que fazem parte da sociedade, assegurando lugar à sua expressão.” (p. 27)

Quais são exatamente os movimentos sociais a que a BNCC está se referindo? O MST e o MTST? O Fórum Social Mundial? Movimentos feministas, quilombola, etc?  Quais? Não cabe pergunta: com que autoridade o CNE/CEB confere a si o direito de elevar as agendas desses movimentos político-ideológicos, altamente comprometidas com partidos de esquerda, em parâmetro para a escolha dos objetivos de aprendizagem do currículo escolar do país?! O Parlamento do Brasil não tem nada a dizer a esse respeito?!

Eu teria muito a dizer, ainda, sobre o abundante emprego ao longo do documento da expressão-talismã “PENSAMENTO CRÍTICO”. Que significa dizer que a BNCC visa desenvolver no aluno a capacidade de pensar criticamente? No sentido empregado por Immanuel Kant em Crítica da Razão Pura, a palavra “crítica” ainda significa basicamente EXAME, REFLEXÃO,  CONTEMPLAÇÃO. Já não é essa a conotação dominante da palavra “crítica” em O Capital – Crítica da Economia Política, de Karl Marx. Crítica aí significa ENGAJAMENTO COM VISTAS A DESTRUIR O OBJETO INVESTIGADO. Até onde pude perceber, parece-me que a ambiguidade reflexão-militância no coração mesmo da palavra “crítica” não apenas perpassa todo o documento da BNCC apresentada pelo Mec, mas o faz com muito mais pendor para a conotação marxista do que para a conotação kantiana. São Tomás de Aquino seguramente ficaria chocado com a promoção de termos equívocos no currículo, quando um dos papéis da instrução escolar seria precisamente preparar o aluno a diferenciar e expressar com clareza o pensamento.

Esse assunto se liga com outro problema intimamente relacionado com o papel das ciências humanas na BNCC. Trata-se da decisão de substituir os TEMAS TRANSVERSAIS presentes nos PCNs pelos chamados TEMAS ESPECIAIS na BNCC apresentada. Segundo os elaboradores do documento, esses temas especiais são “estruturantes e contextualizadores dos objetivos de aprendizagem” (p. 48). Até onde pude compreender, os TEMAS ESPECIAIS não passam de uma versão repaginada dos TEMAS TRANSVERSAIS dos PCNs. E repaginada para pior, posto que no caso dos Temas Transversais, o MEC publicou documentos independentes relativos a cada tema, facilitando a análise da matéria. Na BNCC, o assunto é tratado de forma muito mais sumária e questionável. É fácil identificar as correspondências entre os temas transversais, ainda vigentes, e os temas especiais, propostos pela BNCC:

(Um parênteses muito importante aqui, não dá para tratar aqui a origem da proposta dos Temas Transversais. De forma mais imediata, como se pode verificar na figura apresentada a seguir, essa abordagem ganhou corpo na Espanha e foi imediatamente importada para o Brasil por ocasião da elaboração dos PCNs. Não sei dize se os próprios espanhóis continuam empenhados em inserir essa abordagem em seu sistema escolar, considerando a insatisfação interna na Espanha acerca do baixo desempenho relativo dos alunos de lá no posição no PISA. Esse assunto é importante, pois o Brasil corre o risco de continuar a consumir uma jabuticaba espanhola que já não satisfaz o paladar dos próprios herdeiros de Cervantes).

Tenho dito sempre que os Temas Transversais se prestam de modo especial ao trabalho de militância político-ideológica nos termos da estratégia da “revolução cultural gramsciana”. É relativamente fácil perceber que os lobbies em favor da aprovação de leis que beneficiam grupos sociais específicos (os tais MOVIMENTOS SOCIAIS) tendem a se converter quase imediatamente em demandas pela inserção desses assuntos no currículo escolar. Antônio Gramsci não teria imaginado um terreno mais fértil para travar suas “guerras de posição”, transformando o currículo em casamata conquistada pelo movimento revolucionário.

A luz dessa mudança dos PCNs para a BNCC, parece-me que esse problema se torna ainda mais candente, pois, de um lado, fica mais evidente a orientação política mais estreita dos temas especiais (em vez de “pluralidade cultural”, por exemplo, “Estudos indígenas e africanos”).

Por outro lado, a BNCC não incluiu nos TEMAS ESPECIAIS o tema ORIENTAÇÃO SEXUAL, (curiosamente, nem o tema SAÚDE). Seria precipitado, contudo, concluir que isso se deve à observância pelos elaboradores da BNCC da rejeição pelo Parlamento da introdução da chamada ideologia de gênero no PNE. Digo que a conclusão seria precipitada, porque a BNCC enfatiza, do começo ao fim, a importância das abordagens de gênero no currículo nacional (cf. pesquisa feita pelo prof. Orley da Silva). Quem, sinceramente falando, deixará de desconfiar que a não inclusão da ORIENTAÇÃO SEXUAL na BNCC visa antes ESCONDER a inserção desse tema de forma sub-reptícia no novo currículo?

Gostaria de concluir dizendo que ninguém em sã consciência se oporá à elaboração de um CURRÍCULO MELHOR PARA O PAÍS, um currículo que contribua para retirar uma das maiores economias do planeta da rabeira do desempenho educacional, conforme se verifica pela posição do Brasil no PISA.

A BNCC apresentada pelo MEC, contudo, parece favorecer ainda mais a instrumentalização político-ideológica do ensino escolar, fazendo com que percamos mais tempo e energia ainda do que já perdemos com esse problema; nunca seremos um país cientificamente desenvolvido trilhando esse caminho. É como se, no Paradoxo de Zenão, fôssemos a Tartaruga, quando precisamos ser Aquiles!

Em todo caso, qualquer que seja o destino da BNCC apresentada pelo MEC, uma coisa é certa: o problema da doutrinação político-ideológica nas salas de aula TEM VIDA PRÓPRIA EM RELAÇÃO AO CURRÍCULO. Boas ementas de disciplinas e bons livros didáticos podem certamente ajudar a combater esse problema, mas não são capazes de coibir, por suas qualidades intrínsecas, essa prática ilícita.

Daí o meu apelo final a vossas excelências: ainda que essa casa não consiga influenciar efetivamente o enredo final da  BNCC, poderá ainda prestar um imenso serviço à educação brasileira aprovando o PL 867/2015, que tramita nessa casa e institui o programa ESCOLA SEM PARTIDO. Isto porque essa lei  dará aos estudantes um instrumento para fazerem valer um direito que a Constituição já lhes assegura, o direito de não serem doutrinados por seus professores, ainda que esse direito tenha que ser exercido contra o mal uso de um currículo que se presta a tal manipulação.

1)    O quarto item do Cartaz Antidoutrinação ajudará a combater o desrespeito ao pluralismo de ideias na abordagem dos conteúdos escolares:

IV – Ao tratar de questões políticas, sócio-culturais e econômicas, o professor apresentará aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e seriedade –, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito.

2)    O terceiro item do Cartaz Antidoutrinação ajudará a combater as tentativas de transformar os alunos em réplicas ideológicas de seus professores:

III – O Professor não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas.

3)    O quinto item do Cartaz Antidoutrinação ajudará a combater a usurpação da autoridade dos pais sobre a educação moral dos filhos:

V – O Professor respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções. 

A aprovação do PL ESCOLA SEM PARTIDO ajudará a virar a página triste que o país está vivendo em relação a seu sistema escolar, sendo um perfeito exemplo disso as palavras infelizes que o Ministro da Educação, Aloisio Mercadante (agora ex) proferiu, perante o CNE, ao se posicionar oficialmente contra a lei Escola Livre, corajosamente aprovada pela Assembleia Legislativa: “Não podemos voltar ao tempo da Inquisição, em que Galileu Galilei foi queimado porque achava que a Terra era redonda, e a ‘Fé’ não.” Não há melhor justificativa para a aprovação do projeto de lei, pois elas evidenciam duas coisas: a) a falta que faz uma boa aula de história (Galileu não foi queimado na fogueira e a Igreja sempre ensinou que a terra era redonda nos cursos de astronomia de suas universidades, uma instituição que ajudou a criar); b) que existem professores  abusando de sua autoridade com vistas a denegrir a religião dos outros.

Muito obrigado pela atenção e que Deus abençoe o Brasil.

* Professor do Departamento de Educação da Universidade de Brasília e Vice-Presidente da Associação Escola sem Partido – Palestra proferida na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados, em 31.05.2016.

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