Por Gustavo Ioschpe *
Estou começando a procurar escola para o meu filho, e fico impressionado com o que tenho ouvido e lido a respeito das escolas que procuro. Ouve-se falar pouco no desenvolvimento cognitivo, em aprendizagem, em ciências exatas. Menos ainda alguém se referindo a pesquisa empírica ou aos recentes achados de neurociência. Em compensação, dois temas são unanimidade: cidadania e ética. É uma distorção que me preocupa.
Em primeiro lugar, porque parece presumir que o ensino das matérias tradicionais é uma questão resolvida, e que se ater a elas seria algo menor, reducionista ou, como se diz com certo desdém: “conteudismo”. Não é. O Brasil vai muito mal nessa área, como comprovam todos os testes internacionais comparativos. Vai mal não apenas nas escolas públicas. As escolas privadas brasileiras também são, em geral, ruins, mas salvam as aparências por ter suas deficiências mascaradas pelos problemas ainda mais graves das escolas públicas. No Ideb, indicador de qualidade da educação do MEC, as escolas privadas têm nota média 6, em uma escala que vai até 10. No Pisa, teste internacional de qualidade de ensino, descobrimos que os 25% mais ricos do Brasil têm desempenho educacional pior que os 25% mais pobres dos países desenvolvidos. Ainda nos falta muito, portanto, para que possamos considerar a transmissão de conhecimento como tarefa cumprida.
Sei que há uma corrente de pensamento no país que acha que podemos e devemos fazer tudo ao mesmo tempo, e que priorizar a ética não significa descuidar do conteúdo. Deixo esse assunto para outro artigo, mas já adianto que não acredito que isso seja possível com o nível de institucionalização a que chegou o tema no Brasil. Atualmente o MEC exige que os livros didáticos de matemática (sim, matemática) atuem na construção da cidadania, estimulando “o convívio social e a tolerância, abordando a diversidade da experiência humana”. Seria melhor se esse espaço do livro e o tempo do professor fossem dedicados à atividade nada trivial de familiarizar o aluno com os conceitos básicos da disciplina. Mesmo quando conseguirem cumprir a função básica de ensinar matemática, português, ciências, não creio que os professores devam priorizar de forma ostensiva a pregação ética. São muitas as razões que me levam a essa conclusão. Em primeiro lugar, o desenvolvimento ético de uma criança é uma prerrogativa de seus pais. Acredito que um pai tem direito a infundir em seu filho padrões éticos divergentes do senso comum, que costuma nortear as escolas. Dou um exemplo claro. A questão da preservação ambiental virou um imperativo ético, e as escolas marretam esse tema insistentemente.
Para mim, conforme já expus em artigo aqui, o comportamento ético em um país com o nível de desenvolvimento brasileiro deveria ser privilegiar o desenvolvimento material humano, mesmo que isso implique algum desmatamento. O que me parece antiético é deixar gente sem renda para que árvores sejam preservadas. Não gostaria, portanto, que um professor ensinasse o contrário ao meu filho. O segundo problema é que não acredito que os professores brasileiros estejam preparados para travar a discussão profunda e multifacetada que o tema da ética exige. O mais certo é que a questão desande para o discurso panfletário, rasteiro, frequentemente ideologizado. Não imagino que o utilitarismo, o hedonismo ou o epicurismo sejam ensinados em pé de igualdade com correntes filosóficas que pregam as vertentes mais clássicas da moralidade judaico-cristã. E, sem esse contraponto, não se está ensinando ética, mas sim fazendo doutrinamento.
Essa dinâmica está diretamente atrelada a outro problema, que é a relação hierárquica que caracteriza o ensino formal. Se uma escola fizesse uma disciplina de ética opcional ou não avaliada, creio que seria possível que houvesse alguma evolução verdadeira por parte do alunado. Mas, no momento em que esse tema virou transdisciplinar e vale nota, é óbvio que os alunos minimamente atilados saberão conformar suas respostas às expectativas e inclinações de seus professores. Quando eu estava na escola, era formada por marxistas a maioria dos professores de história, português, geografia e outras disciplinas da área de humanas. Isso fazia com que eu e muitos outros colegas nos certificássemos de que toda resposta em prova incluísse alguma lenhada na burguesia e uma conclamação à construção de um mundo mais fraterno. Não por convicção, mas porque o nosso falso esquerdismo rendia notas melhores. Tenho certeza de que os mensaleiros, anões do Orçamento, sanguessugas e demais patifes também pregavam a justiça universal em seus tempos de escola.
Surge aí mais um problema do ensino-cidadão, que é a sua total inutilidade. A psicologia evolutiva demonstra que há um substrato ético que é genético e comum à nossa espécie e a alguns primatas. Complementando essa camada, acredito que a formação de uma consciência ética está indissociavelmente atrelada às experiências de vida, não a ensinamentos acadêmicos. Essa consciência se forma através de um sistema de recompensas e punições trabalhado primordialmente pelos pais de uma criança, desde seus mais tenros anos. É o receio da perda do amor paterno que nos leva a agir de forma ética, em um mecanismo inconsciente. Posteriormente, somam-se a essa base a história de uma pessoa e a fortaleza institucional do local em que ela vive.
O psicólogo Steven Pinker relata o exemplo do que aconteceu, literalmente da noite para o dia, quando a polícia da sua Montreal entrou em greve: uma cidade até então pacata e segura viu-se engolfada por uma onda de criminalidade que só cessou com o fim da greve. A população não sofreu um desaprendizado coletivo naquele período: ela agiu como muitos de nós agiríamos em um cenário em que as violações éticas não fossem punidas. Conhecer Sócrates ou Nietzsche não deve alterar o comportamento da maioria das pessoas. Para ser íntegra, a criança precisa receber orientação de seus pais e, depois, saber que desvios antissociais serão punidos. Alguns professores acreditam que podem sanar, com sua atuação, as deficiências da família e do estado. É ilusão. Um estudo recente das pesquisadoras Fátima Rocha e Aurora Teixeira, da Universidade do Porto, investigou a cola em 21 países e apontou haver relação direta entre a desonestidade em sala de aula e o índice de corrupção do país.
Para aqueles que imaginam que este autor é um defensor de uma escola amoral, explico-me. Acredito, sim, que a ética tem papel vital na escola, mas não no discurso, e sim na ação. Cabe à escola criar um ambiente de total liberdade intelectual, mas sem esquecer de aplicar no seu dia a dia os princípios éticos que norteiam a vida em sociedade. Com coisas simples e em todas as matérias: as aulas devem começar no horário, os professores não devem faltar, os alunos violentos devem ser punidos, as regras da escola devem ser aplicadas a todos. E eis aí o busílis da questão: ao mesmo tempo em que são incompetentes e doutrinárias no ensino da ética, nossas escolas são antiéticas em sua prática. O exemplo mais claro: a cola. No estudo citado, descobre-se que 83% dos universitários brasileiros já colaram, um dos índices mais altos do mundo. Cem por cento dos alunos brasileiros já viram alguém colando.
Nos meus tempos de aluno, havia gente colando na grande maioria das provas. É difícil imaginar que os professores não percebessem o que estava acontecendo. Em vários casos, os professores notavam e então caminhavam pela sala, parando perto do “colador”, ou às vezes chamavam seu nome. Mas, se não me falha a memória, em onze anos de escola jamais vi um único aluno perder a prova, a nota do bimestre ou sofrer sanção mais séria por um delito que é provavelmente o mais grave para um ambiente em que se preza o saber. O ensino da ética, em uma realidade assim, é um deboche. Mais do que um deboche, é um desserviço: quando nossas escolas falam sobre o tema e praticam o oposto, a mensagem implícita é que esse negócio de ética e cidadania é papo-furado, pois já na escola os trapaceiros se dão bem. Melhor seria não falar nada.
Artigo publicado na revista Veja, edição de 28 de junho de 2010