Caso CAPES: a hipocrisia dos pesquisadores marxistas

Por Luís Lopes Diniz Filho *

Recentemente, pesquisadores marxistas e de outras vertentes da teoria social crítica começaram um movimento político de revolta motivado pela resposta negativa da Capes a uma solicitação de recursos para um projeto coletivo de pesquisa intitulado “Crise do Capital e Fundo Público: implicações para o trabalho, os direitos e as políticas sociais”. O pedido de financiamento foi negado sob a justificativa de que havia muitos projetos bons requisitando recursos e também a de que os proponentes desse projeto já tinham sido beneficiados pouco tempo antes com recursos do mesmo edital da Capes. Todavia, como o parecer sobre o projeto de pesquisa atribuiu-lhe uma nota baixa alegando que o “método marxista histórico-dialético […] não garante os requisitos necessários para que se alcance os objetivos do método científico”, marxistas e outros teóricos socialistas dos quatro cantos do Brasil se mobilizaram com o objetivo de pressionar a Capes a rever seus critérios e procedimentos (ver aqui).

Eu li o referido parecer, e o considero de má qualidade. Além de muito mal escrito, o parecer faz afirmações categóricas no espaço de duas linhas, sem detalhar o conteúdo do projeto em apreço para justificá-las. No entanto, a reação dos marxistas ao parecer – especialmente considerando que não foi a avaliação feita sobre a falta de cientificidade do marxismo que motivou a recusa da Capes – denota a hipocrisia típica de intelectuais e militantes marxistas: quando eles não detém o controle de determinada instituição, exigem pluralismo democrático, isenção e se dizem politicamente perseguidos; mas, quando estão no controle, declaram que neutralidade política não existe e, assim, não dão voz ao contraditório.

É o que se viu recentemente no caso do Avaaz, movimento político que, não por acaso, foi usado para mover uma petição contra a Capes por conta desse episódio (ver aqui). É o que se vê também nos debates que envolvem o problema da doutrinação ideológica em nosso sistema de ensino: sempre que professores marxistas e freirianos são criticados por mostrarem uma única via de explicação da realidade aos seus alunos, eles se defendem com o argumento fajuto de que “educar é um ato político” e que, sendo assim, neutralidade não existe. Quem tiver alguma dúvida disso só precisa visitar o site Escola Sem Partido, ler o meu livro Por uma crítica da geografia crítica (Editora da UEPG, 2013) ou clicar no marcador “Doutrinação” deste blog.

Esqueceram de Karl Popper

Mas a hipocrisia ainda vai além. Vejamos a seguinte passagem de um manifesto redigido pelo Grupo de Estudos e Pesquisas Marxistas (GEPM) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), contra o parecer relativo ao projeto em questão:

Em primeiro lugar, as razões alegadas seriam apenas supostamente acadêmicas e científicas. Toda uma tradição de pensamento nas ciências sociais no mundo, que julga Marx como um dos clássicos da sociologia, por exemplo, foi completamente desconsiderada e jogada na lata do lixo, pois o autor do parecer julgou que o marxismo não preenche os requisitos do método científico. Sociólogos não marxistas e, sob certos aspectos, até antimarxistas, tais como Raymond Aron e Anthony Giddens, apenas para citar dois dos nomes mais renomados do meio acadêmico, dedicaram extensas páginas a examinar a obra de Marx, demonstrando, no mínimo, respeito pela produção marxista. Na tradição de ensino das ciências sociais brasileiras, em especial a partir da obra de Florestan Fernandes,Fundamentos empíricos da explicação sociológica (1954), convencionou-se que o ensino da sociologia clássica estaria centrado nas contribuições de Durkheim, Weber e Marx. Ou seja, o julgamento individual expresso no parecer ignora toda essa tradição histórica das ciências sociais. Nesse sentido, o argumento de que o método marxista histórico-dialético não preenche os requisitos da ciência é meramente um julgamento pessoal/subjetivo, que não se sustenta em um rápido exame das tradições clássicas, modernas e contemporâneas das ciências sociais. Portanto, tal parecer, na verdade, faz-nos lembrar de episódios de perseguição política e ideológica que ocorreram no passado recente, como, no período da guerra fria, onde ocorreu o caso da vigilância ideológica impetrada contra comunistas e simpatizantes nos Estados Unidos, nos anos de 1950 no movimento denominado Macarthismo, liderado pelo senador Joseph Mccarthy. Ou ainda, um pouco mais recente, pode-se citar a censura nos anos de chumbo no caso brasileiro (ver aqui – sem negrito no original).

Os autores do manifesto têm razão quando dizem que o parecer ignorou o fato de que a avaliação segundo a qual o marxismo não atinge os objetivos do método científico é questionável, e tanto que há muitos autores críticos do marxismo que não descartam tal corrente de pensamento nesses termos. A obra O marxismo de Marx, do citado Raymond Aron (2005), mesmo negando a pretensa cientificidade do “profetismo” de Marx e Engels, permite constatar isso. Além do mais, é fato que o marxismo já foi institucionalizado pela presença de muitos pesquisadores e professores marxistas em universidades do mundo inteiro, o que fragiliza a afirmação categórica feita no parecer contra a cientificidade desse método.

Todavia, inferir daí que o parecer foi pessoal, subjetivo e, por isso mesmo, denota perseguição ideológica, mostra que os autores do manifesto também ignoraram um clássico muito importante no debate epistemológico, que é Karl Popper (1992-1994). De fato, esse autor sempre defendeu que o marxismo e também a psicanálise são formas de “pseudo-ciência” tal como a astrologia, na medida em que formulam teorias que não obedecem ao princípio da falseabilidade (Popper, 1980). Os marxistas obviamente discordam dessa conclusão, mas não podem falar como se esse autor nunca tivesse existido e nem fazer de conta que a cientificidade do marxismo seja inatacável para daí inferirem que qualquer afirmação nesse sentido só possa ser fruto de opinião pessoal e de perseguição ideológica!

Finalmente, note-se a tremenda hipocrisia dos autores críticos do capitalismo. É público e notório que os marxistas classificam todas as teorias científicas que não implicam uma crítica radical ao capitalismo como ideologias úteis aos interesses das ditas “classes dominantes”! Tanto é assim que autores de diversas correntes do marxismo usam expressões como “ciência burguesa” e “teóricos burgueses” para reduzir as teorias econômicas e sociais não marxistas a meros discursos ideológicos. E autores como Boaventura de Souza Santos traçam uma oposição explícita entre a “ciência imperial” e a “ciência multicultural”, que representariam, respectivamente, os interesses dos grupos “hegemônicos” e “contra-hegemônicos” da sociedade – um stalinismo com roupagem pós-modernista.

Pior ainda, os marxistas muitas vezes afirmam que a adesão ao marxismo é uma tomada de posição ao mesmo tempo teórica, política, pessoal e moral, como se vê, por exemplo, nas avaliações de autores como Florestan Fernandes e Otavio Ianni a respeito de Caio Prado Júnior (Caldeira, 2009, p. 27-30). Não surpreende, pois, que muitos autores marxistas e de outras vertentes da teoria social crítica deem a entender, ou até afirmem explicitamente, que os teóricos de outras correntes são mercenários que inventam teorias para ganhar dinheiro (Diniz Filho, 2013). Como também não há nada de surpreendente no fato de que o método dialético se tornou uma ciência oficial nos países comunistas, como União Soviética e China, servindo como justificativa “científica” para todo tipo de censura e de perseguição política, até mesmo no âmbito das ciências da natureza!

Conclusão

Não foi por causa do comentário sobre a falta de cientificidade do marxismo que o pedido de financiamento foi negado. Mas é certo que não se deve rebaixar a nota de um projeto de pesquisa alegando sumariamente que o método escolhido não é científico, pois esse tipo de afirmação pode remeter a uma história de grandes polêmicas epistemológicas, além de esbarrar no fato de que o método em questão já pode estar institucionalizado na academia, como é o caso do marxismo. Um parecer deve detalhar o projeto de pesquisa para demonstrar que ele tem falhas que justificam a nota aplicada, como indefinições de objeto, incoerências metodológicas, ausência de hipóteses a serem examinadas, falta de fundamentação, etc.

Apesar de falho, o parecer não foi subjetivo e não implica qualquer forma de perseguição política, na medida em que, ao contrário do que dizem esses signatários de petições e manifestos, a cientificidade do marxismo é questionável e foi objeto de um debate que faz parte da história da ciência. Não bastasse isso, o rebuliço armado pelos marxistas e outros teóricos críticos por conta desse episódio põe a nu uma hipocrisia inegável, pois falam como se questionar a cientificidade do marxismo fosse perseguição política, muito embora eles neguem explicitamente a cientificidade de outras abordagens, lancem suspeitas contra aqueles não seduzidos por suas teorias e ainda se autoatribuam superioridade moral somente por defenderem teses anticapitalistas.

A verdade é que, se um dia os marxistas e outros teóricos críticos conseguirem aparelhar a Capes, pesquisas não alinhadas com seu modo de pensar terão o financiamento negado por razões ideológicas e, quando alguém reclamar de perseguição, eles vão dizer, citando Marx, Gramsci e Boaventura de Souza Santos, entre outros, que não existe ciência neutra! É o que dizem os educadores freirianos, afinal.

* Professor do Depto. de Geografia da Universidade Federal do Paraná e colaborador do ESP

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