Por Reinaldo Azevedo
O País dos Petralhas, o livro, tem me dado algumas alegrias. A maior delas, sem dúvida, será o reencontro, marcado para o próximo dia 7, com Laila Nicolau. Quem é ela? A minha professora de língua portuguesa da 5ª série, o então “1º ginasial”. Ela procurou Alfred Bilyk, da editora Barracuda, que publicou meu primeiro livro, Contra O Consenso. Deixou e-mail e telefone. Muito comovido, falei com ela nesta quarta-feira.
Eu tinha, então, 10 anos. Ficaram-me pelo caminho outros 37.
“Dona Laila” me presenteou, menino, com livros de Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Manuel Bandeira… E eu devorava aquilo tudo, fascinado, sem compreender direito, e a indagava. E ganhava mais livros como resposta. Um dia, não sei como, lá veio ela com Poema em Linha Reta, de Fernando Pessoa… Fui entendendo aos poucos o que era aquilo. E decorei para as nossas peças de teatro, de que falo adiante, Prece do Brasileiro, de Drummond, que jamais esqueci. E tantos outros textos, que ainda guardo na memória.
Não falo disso por apreço à mitologia pessoal. Dona Laila trabalhava numa escola de periferia, com filhos de operários, alguns, só fui compreender mais tarde, com manchas visíveis de subnutrição, que só a merenda não conseguira curar. Formou um grupo que reunia alunos dos quatro anos do ginásio para aulas de interpretação de texto e teatro. Reuníamo-nos depois da última aula e, com freqüência, aos sábados. Enfrentava o mau humor do zelador, Seu Marino, que lhe indagava sempre se tinha autorização da diretora para transgredir as normas. Ela dizia que sim. Eu tinha certeza de que não.
Íamos, muitas vezes, esperá-la no ponto de ônibus. Conseguia carregar mais coisas do que prometia a força humana: sacolas nos braços lotadas de livros, pilhas de apostilas impressas em sua casa, num mimeógrafo a álcool, um toca-discos portátil, os discos, os jornais do dia, às vezes um figurino… Sei que vou me comover muito ao falar com ela, como estou comovido agora. Não só porque não consegui, como nenhum de nós, trazer o tempo roubado na algibeira (Fernando Pessoa!), mas porque “Dona Laila” é a maior professora que conheço. Contra todas as dificuldades. Encarna a vocação na sua forma mais pura.
Um mau professor é um ser indesculpável.
Tenho ainda suas apostilas, sei trechos inteiros das nossas peças de teatro. No palco improvisado no pátio, fui Padre Vieira, João Goulart, João Ramalho, Chacrinha, Lalau (personagem do livro A Vaca Voadora), Pedro Álvares Cabral… Levava-se a coisa tão a sério, que se fazia anualmente a eleição do “melhor ator” e da “melhor atriz”, com urna e tudo… Reitero: refiro-me a uma escola de periferia, com mais da metade do contingente dos alunos pendurados no que se chamava, então, “Caixa” — depois Associação de Pais e Mestres (APM). A Caixa fornecia o material básico — os livros, nem sempre — aos carentes. Dona Laila me deu de presente todos os de que precisei e todos os que ela achou que eu precisava.
Tenho muito frescas na memória suas aulas, tanto as regulares como as especiais. Estou falando de 1971, de tempos rombudos. Não eram dias, sei bem, para proselitismo. Mas ela jamais se ocuparia disso. Não estava lá para nos “libertar” — a não ser da ignorância — ou nos politizar. Tinha outros propósitos: “Menino, você tem de perceber o ritmo do poema!”. Sim, Laila Nicolau se ocupava de ensinar “o ritmo do poema” a filhos de operários. Nós tínhamos esse direito.
Laila Nicolau não ensinava a bater lata.
Laila Nicolau não ensinava a sambar.
Laila Nicolau não ensinava a contestar.
Laila Nicolau não ensinava nada que pudéssemos aprender por nossa própria conta ou que pudesse nos ser ensinado por nossos iguais. Ela estava ali para oferecer um repertório novo e nos tirar daquela forma de solidão que era o nosso mundinho. Ou não terão os pobres nem mesmo o direito à transcendência?
Façam-se as revoluções, digamos, estruturais todas na educação, e o professor será sempre a grande diferença — ou as escolas particulares nas quais nada falta seriam exemplares, e elas não são. Para tanto, é preciso, sim, vocação — ou nada feito — e a consciência, que tem de ser adquirida na universidade, de que o conhecimento é, antes de tudo, instrumento de liberdade individual. Infelizmente, vamos mal nisso. Vocês sabem, e mostrei isso aqui há dois dias, do que é capaz um desses professores “libertadores”, não é?
Até o dia 7, Dona Laila, quando eu a abraçarei. Muito comovido.