ENEM (2007)

Esquerdopatia e ignorância militante no ENEM

Por Reinaldo Azevedo

Vi o exame do Enem, aplicado ontem (íntegra aqui). Em muitas faculdades, ele já substitui o vestibular como acesso do aluno ao terceiro grau e também serve de critério de seleção para o ProUni. Leiam vocês mesmos. O que se vê ali é assustador. As escolas públicas nada dirão porque não estão nem aí. As particulares não vão comprar briga porque o setor é sempre governista. Mas o fato é que a prova é uma vergonha.

– Uma vergonha técnica;
– Uma vergonha ideológica;
– Uma vergonha pedagógica;
– Um crime contra a educação brasileira.

Mostra-se inteira a propalada competência do Ministério da Educação. O Enem não prova nada. Se o exame fosse substituído por um mata-burros, o resultado não seria muito diferente. Elaborado pelo consórcio Cesgranrio-Cesp (UnB), ele nada tem a ver com a grade vigente tanto no ensino público como no ensino privado, onde a carga horária maior, com justiça, recai sobre língua portuguesa e matemática. A prova do Enem é, para ser genérico, de “Estudos Sociais”. Sabem quantas questões há, digamos, próximas da gramática? A pergunta tem de ser feita no singular para resposta idem: UMA. Sabem quantas questões poderiam ser consideradas de matemática? Quatro. E, ainda assim, uma matemática corroída pelo proselitismo vagabundo.

Redação

Naquela entrevista que concedeu à revista VEJA há 11 anos, o poeta Bruno Tolentino, morto em 17 de junho, decidiu que um de seus filhos não estudaria no Brasil. Segundo ele, não queria uma escola em que Caetano Veloso fosse considerado alta literatura. Bruno era muito exigente. O tema de redação deste ano traz como inspiração uma letra do grupo Engenheiros do Hawaii, outra dos Titãs e o fragmento de um texto da ONU. No caso dos Engenheiros, há versos inspirados como “todos iguais, todos iguais mas uns mais iguais que os outros”. Os Titãs emendam: “Todos os homens são iguais/ são uns iguais aos outros, são uns iguais aos outros”. E a ONU arremata: “Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade biológica para a natureza”.

Aí propõe o examinador:

Todos reconhecem a riqueza da diversidade no planeta. Mil aromas, cores, sabores, texturas, sons encantam as pessoas no mundo todo; nem todas, entretanto, conseguem conviver com as diferenças individuais e culturais. Nesse sentido, ser diferente já não parece tão encantador. Considerando a figura e os textos acima como motivadores, redija um texto dissertativo-argumentativo a respeito do seguinte tema “O desafio de se viver com a diferença”

Não é uma proposta de redação, mas um teste ideológico. Um dos meus sobrinhos, filho da minha irmã, fez a prova: “Mandei ver, tio. Falei que índio praticar infanticídio é uma diversidade que eu não respeito”. E eu: “Cara, você fez isso? Então já se danou (eu empreguei outro verbo, confesso…)” E ele: “Claro que não, né, Tio? E eu sou besta? Tava na cara que era para elogiar a diversidade. Era uma prova petista do começo ao fim. Escrevi tudo o que eles queriam ler”. Sábio rapaz. Já percebeu a semente do estado policial.

Mistificação paulo-freiriana

Há muito tempo a patrulha paulo-freiriana e adjacências vêm forçando a mão sobre os vestibulares — que exigiriam o conhecimento em disciplinas estanques. Aí o Enem faz o quê? Sem que as escolas tenham mudado (mantêm professores especialistas, felizmente), o governo aplica uma prova supostamente “interdisciplinar”. Há, por exemplo, sete questões que poderiam ser consideradas de “interpretação de texto” não fosse maior o propósito de marcar uma posição ideológica do que o de testar o entendimento do que está escrito.

Sabem aquele papo do “saber integral”? Então. Um texto sobre canavieiro serve a questões de estudos sociais, interpretação de texto, geografia, química, biologia e, bem…, matemática!!! Vejam que gracinha. Informa-se, por exemplo, que um cortador de cana ganha R$ 2,50 por tonelada e que, por dia, ele corta oito toneladas. Aí, então, o estudante é chamado a fazer uma conta. Leiam a questão quatro:

Considere-se que cada tonelada de cana-de-açúcar permita a produção de 100 litros de álcool combustível, vendido nos postos de abastecimento a R$ 1,20 o litro. Para que um corta-cana pudesse, com o que ganha nessa atividade, comprar o álcool produzido a partir das oito toneladas de cana resultantes de um dia de trabalho, ele teria de trabalhar durante

A – 3 dias.
B – 18 dias.
C – 30 dias.
D – 48 dias.
E – 60 dias.

Fez a conta, Mané? É isso aí. É a matemática achada na rua. O estudante tem de concluir que o cortador é uma pobre vítima desse capitalismo podre. Afinal, precisaria trabalhar 48 dias para comprar o combustível que o seu trabalho “produzira” em um!!! Como a gente sabe, cana nasce como mato, certo? Não é preciso preparar a terra, adubar, plantar, financiar o plantio, a colheita, a produção, o transporte até a usina, cuidar da parte industrial, ter laboratório de pesquisa, transportar depois o produto final, nada disso. É chegar, passar o facão naquele “mato” e ver escorrer o álcool. Trata-se apenas de uma estupidez. Ah, claro, vocês sabem: a diferença entre os R$ 20 (R$ 2,50 X 8) que o cortador ganha por dia e os R$ 960 que rendem em álcool as oito toneladas que ele cortou (R$ 1,20 X 100 X 8 = R$ 960) deve ser o que o marxismo chulé brasileiro chama “mais-valia”…

E como uma coisa puxa a outra, ainda ligado ao tema, temos, então, a questão 7, de interpretação de texto, notavelmente casada com a questão quatro, que seria de matemática. Oferece-se, então um mau poema de Ferreira Gullar para uma questão que beira um teste de demência:

O açúcar

O branco açúcar que adoçará meu café
nesta manhã de Ipanema
não foi produzido por mim
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.
Vejo-o puro
e afável ao paladar
como beijo de moça, água
na pele, flor
que se dissolve na boca. Mas este açúcar
não foi feito por mim.
Este açúcar veio
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira,
[dono da mercearia.
Este açúcar veio
de uma usina de açúcar em Pernambuco
ou no Estado do Rio
e tampouco o fez o dono da usina.
Este açúcar era cana
e veio dos canaviais extensos
que não nascem por acaso
no regaço do vale.
(…)
Em usinas escuras,
homens de vida amarga
e dura
produziram este açúcar
branco e puro
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.

A antítese que configura uma imagem da divisão social do trabalho na sociedade brasileira é expressa poeticamente na oposição entre a doçura do branco açúcar e
A – o trabalho do dono da mercearia de onde veio o açúcar.
B – o beijo de moça, a água na pele e a flor que se dissolve na boca.
C – o trabalho do dono do engenho em Pernambuco, onde se produz o açúcar.
D – a beleza dos extensos canaviais que nascem no regaço do vale.
E – o trabalho dos homens de vida amarga em usinas escuras.

Entenderam? A prova é toda ela feita desses encadeamentos — leiam o original. Trata-se de um exame temático — biocombustíveis, aquecimento global, respeito às diferenças e um pouco de, sei lá, saneamento talvez. Esses assuntos pautam todas as questões, a larga maioria, acreditem, no campo do que, no meu tempo, se chamava geografia — não a física, mas a humana. Convenham: não dá pra brincar de luta de classes na geografia física, a menos que se proponha a revolta da planície contra o Planalto — o que não seria má idéia, se é que me entendem…

Vamos falar um pouco de história? Aí vem este texto:

“Após a Independência, integramo-nos como exportadores de produtos primários à divisão internacional do trabalho, estruturada ao redor da Grã-Bretanha. O Brasil especializou-se na produção, com braço escravo importado da África, de plantas tropicais para a Europa e a América do Norte. Isso atrasou o desenvolvimento de nossa economia por pelo menos uns oitenta anos.”

É de Paul Singer, economista petista e auxiliar de Lula .

É evidente que não é proibido usar texto de um auxiliar do Apedeuta. Ocorre que o que vai acima não é história, mas ideologia. No caso, marxismo — expresso de forma explícita, para quem conhece, no trecho destacado em vermelho. Os “oitenta anos”, com a devida vênia, são puro chute. Não há um modelo para medir isso. Até meados do Segundo Império, o Brasil não ficava a dever aos EUA. As coisas degringolaram depois. Quando se trata de debater a escravidão, o texto de referência é do e militante negro Kabengele Munanga, um professor da USP com graduação em Antropologia Cultural na Universidade Oficial do Congo.

As escolas e o Enem

Muito se debate a melhoraria da escola pública brasileira. Nos últimos tempos, o discurso oficial fala na “revolução da qualidade”. A prova do Enem evidencia de que qualidade se está falando. É perfeitamente possível ter um desempenho apreciável no exame sendo um idiota em língua portuguesa, matemática, história, geografia, geometria, biologia, física, química…

Se o sujeito for razoavelmente alfabetizado, ele só precisa demonstrar que é uma “boa pessoa” e que defende as mesmas causas abraçadas, ao menos no discurso oficial, pelo regime. Basta, em suma, ser politicamente correto, amando a natureza, os pobres, a igualdade, o planeta e as diferenças culturais (quem sabe o infanticídio ianomâmi…). E, acima de tudo, é preciso odiar a injustiça social. Ainda que seja incapaz de dizer quanto é 9 vezes 7. Afinal, vocês sabem: aula de matemática agora serve à liberdade. Depois da “etnomatemática”, temos a “etanol-matemática”… No caso da geografia, não é preciso mais ensinar a ver uma mapa ou a ler uma escala. Basta discutir cotas raciais e textos do professor Munanga.

O desempenho no Enem serve para selecionar alunos para o ProUni, que chamei ontem aqui de “supletivização” do ensino universitário. O exame, leiam lá, faz a apologia da ignorância militante. Com um pouco de concentração, Lula acerta as 63 questões. E isso prova do que estamos falando.

Só pra lembrar e encerrar

Naquele vídeo que postei aqui sobre o 3º Congresso do PT, a mocinha fala que não basta chegar ao poder para mudar a sociedade; é preciso, diz, mudar a sociedade para chegar ao poder. Não há dúvida de que há uma mudança em curso. Noto que a cerviz de muitos já está vergada. Mais um pouco, começaremos a usar os nossos membros dianteiros para correr com mais agilidade.

Publicado no blog do autor em 27 de agosto de 2007.

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