Ensinando o ódio

Por Demetrio Magnoli *

“Uma certa miopia social pode ser mais produtiva politicamente do que um olho perfeitamente são.” A frase, do ex-diretor da Capes Renato Janine Ribeiro, conclui uma comunicação acadêmica consagrada às políticas de identidades – ou seja, no caso do Brasil, especialmente às políticas de preferências raciais. O cerne do texto encontra-se na ideia de que “uma estratégia política das diferenças (…) pode sustentar uma tática política da desigualdade, num sentido fortemente compensatório – isto é, de que para chegarmos à igualdade será preciso passarmos pela desigualdade”.

Renato Janine é um pensador íntegro, não um panfletário rancoroso. Seu texto, pontilhado de dúvidas e perplexidade, é algo como uma renúncia à utopia marxista organizada em torno da luta de classes. No lugar do fracassado programa revolucionário, seria a hora de aceitar a “miopia” mais “produtiva” das políticas diferencialistas, que descortina o cenário de uma sociedade constituída por segmentos identitários: afro-brasileiros, europeus étnicos, indígenas, quilombolas…

O marxismo, a ditadura do proletariado e o totalitarismo stalinista, que não são idênticos uns aos outros, certamente formam galhos da vasta árvore iluminista nascida à sombra do estandarte da igualdade. Mas, ao contrário do que parece sugerir Renato Janine, a árvore tem muitos galhos saudáveis. Fora da esfera soviética, as lutas sociais romperam o círculo de ferro do liberalismo elitista. O voto feminino, a educação e a saúde públicas, os sistemas de previdência social atestam a “produtividade” de um credo assentado sobre o princípio da igualdade política dos cidadãos. Por que motivo deve ser abandonada a obra infinita, ainda tão precária entre nós? Como se justifica a sua substituição por uma estratégia que fragmenta o povo em segmentos circundados pelas muralhas das “identidades”?

De acordo com Renato Janine, a luta de classes tenderia à guerra de extermínio, enquanto a “política das diferenças” se orienta pela meta do “reconhecimento do outro”. A primeira assertiva é desmentida por cem anos de lutas trabalhistas nas democracias “burguesas”. A segunda, por genocídios colossais ou pequenos massacres cotidianos que, da Alemanha nazista à Ruanda hutu e da Índia das castas à Nigéria das etnias oficiais, formam um plantel de experiências históricas sobre a dinâmica das políticas identitárias. As pessoas mudam de ideia, de partido, de estrato de renda e de classe social, mas não podem mudar de “raça” ou “etnia”. Eis o motivo pelo qual as Constituições democráticas rejeitam a classificação oficial dos cidadãos segundo o critério do sangue.

“Nós tivemos de ensinar o povo a odiar os sulistas, a enxergá-los como pessoas que expropriavam os seus direitos”, explicou um líder dos hauçás da Nigéria setentrional, referindo-se ao sistema de preferências étnicas inscrito nas leis do país. A “estratégia política das diferenças” é uma pedagogia do ódio destinada a construir comunidades identitárias coesas. No Brasil, percorremos a etapa inicial dessa trajetória pedagógica. Como em tantos outros lugares, tenta-se ensinar o ódio primordialmente na escola. A missão, conduzida pelo MEC, tem como alvos as crianças e os jovens das escolas públicas.

A palavra “revanche” encontrou sentido positivo na resolução do MEC, de junho de 2004, que regulamenta as Diretrizes para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Nela o Brasil é descrito como um país binacional no qual “convivem (…) de maneira tensa, a cultura e o padrão estético negro e africano e um padrão estético e cultural branco europeu”. Neste país partido em dois, “não é fácil ser descendente de seres humanos escravizados”, mas também é difícil “descobrir-se descendente dos escravizadores” e “temer, embora veladamente, a revanche dos que, por cinco séculos, têm sido desprezados e massacrados”. Qual será a opinião de Renato Janine sobre tais passagens, convertidas em ato legal por Tarso Genro e referendadas por Fernando Haddad?

A pedagogia do ódio é também a da falsificação da História. A resolução, que manda celebrar o 20 de novembro como Dia da Consciência Negra, não traz palavra alguma sobre o movimento popular abolicionista, definindo o 13 de maio como “o dia de denúncia das repercussões das políticas de eliminação física e simbólica da população afro-brasileira no pós-abolição”. No dia de hoje, se os professores seguirem as diretrizes do MEC, nenhum estudante ouvirá os nomes de Joaquim Nabuco, José do Patrocínio, Antônio Bento e Luís Gama ou conhecerá os feitos de incontáveis anônimos, de todas as cores e classes sociais, que derrotaram a escravidão e derrubaram os pilares do Império. Por outro lado, serão apresentados a nada menos que um genocídio racial, evento que clamaria pela “revanche”.

As palavras da resolução têm consequências cotidianas. Nas escolas públicas, o MEC distribui livros didáticos dedicados a dividir os jovens estudantes em “brancos” (“descendentes dos escravizadores”) e “negros” (“os que, por cinco séculos, têm sido desprezados e massacrados”), enquanto suas comissões de seleção aplicam as diretivas oficiais para excluir as obras que não retratam o Brasil como o país binacional inventado por “uma certa miopia social”. Uma gosma de doutrinação racial escorre para dentro das salas de aula, emporcalhando todo o sistema de ensino.

As pessoas aprendem a odiar. O ódio racial é um substituto míope, mas fácil, para a complexa, nuançada reflexão política sobre nossas ruínas sociais. Renato Janine não deixaria de comparecer ao simpósio promovido pela Capes e pela British Academy no qual fez o elogio da miopia. Estará ele presente quando jovens colegas de escolas públicas atirarem pedras uns nos outros porque os tons da pele separam seus destinos no umbral da universidade?

Artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, edição de 13 de maio de 2010

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,ensinando-o-odio-,551093,0.htm

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