Em Ilusões Perdidas, Balzac usa uma expressão elegante, um tanto de época, para definir certos canalhas do jornalismo. Na era da comunicação eletrônica, a tarefa é um tanto facilitada. Fiz uma síntese dos argumentos do PCC do jornalismo contra o artigo de Ali Kamel que trata da manipulação da informação histórica em livros didáticos. Em vez de presumir coisas, decidi ouvi-lo. Assim como os espadachins divulgam a mentira, divulguemos a verdade.
Blog – Você manipulou as datas dos livros comprados pelo MEC só para incriminar o PT?
Ali Kamel – Tenho arquivada toda a troca de e-mails entre mim e a assessoria do MEC. Em nenhum momento — repito, em nenhum momento —, o MEC me informou que o livro em questão tinha sido incluído na lista em 2002 e que dela não constaria em 2008.
Blog – Mas o livro continua sendo usado, não continua?
Ali Kamel – Sim, continua.
Blog – Você perguntou isto ao MEC, isto é, se o livro continuava em uso?
Ali Kamel – Perguntei expressamente se o livro era recomendado oficialmente pelo MEC.
Blog – Você tem arquivado o histórico de seus contatos com o MEC?
Ali Kamel – Tenho. A minha pergunta, no dia 5 de setembro, foi feita exatamente nestes termos: “Peço agora que você me ajude a descobrir se o livro Nova História Crítica, da oitava série, que leva o selo PNLD 2005, FNDE, Ministério da Educação, da Editora Nova Geração, cujo autor é Mario Furley Schmidt, é mesmo recomendado pelo MEC. Se for – e creio que é -, gostaria de saber quantos livros foram comprados e quantos livros foram distribuídos pelo Brasil inteiro. Você me ajuda?”
Blog – E o que seu interlocutor responde?
Ali Kamel – Reproduzo entre aspas: “Pode deixar, vou conversar com a equipe.” Seguiu-se o feriado de Sete de Setembro, e, no dia 10, o MEC respondeu da seguinte forma, também entre aspas: “Seguem os dados sobre o livro Nova História Crítica.” Na mesma mensagem, vinha descrito o número de exemplares comprados em 2005, 2006 e 2007. Mandei ainda outra mensagem, perguntando se o número bruto estava certo, e recebi nova mensagem explicando que sim, que os números estavam certos. A assessoria dizia na mesma mensagem: “Vou pedir para a equipe verificar se esse foi mesmo o livro de história mais adotado.”
Blog – E qual foi a resposta?
Ali Kamel – No dia 11, recebi uma mensagem dizendo: ” Esclarecimentos feitos pelo FNDE sobre o livro Nova História Crítica: “Sim, ele foi o livro de história mais adotado no PNLD 2005.” Em nenhum momento, a assessoria do MEC se preocupou em me dizer que estávamos falando de um livro que já saíra do catálogo por apresentar falhas. Depois que o artigo foi publicado, perguntei ao MEC por que a informação me fora sonegada. Responderam-me que, desde o início acreditaram que eu me referia ao triênio começado em 2005. Ora, mesmo que assim tenha entendido, por que o MEC não quis me dizer que o livro já estava descartado? Não sei e fico intrigado, já que o ministério, muito republicanamente, sempre foi solícito ao responder as minhas perguntas. Se tivesse me dito que o livro já fora reprovado, eu teria registrado o fato no meu artigo.
Blog – A opinião é minha, você não precisa concordar. Isso não muda nada. Nem livra ninguém de responsabilidades. De resto, você não atacou governos. E os livros estão aí, sendo usados em sala de aula. Outra crítica que a tropa de choque faz a seu artigo é que você teria selecionado trechos favoráveis à sua tese, desconsiderando aspectos também críticos ao marxismo.
Ali Kamel – Não é verdade que o livro critique o marxismo. Isso é coisa de gente que não leu o livro. Em todas as suas páginas, o marxismo é elogiado. As passagens que reproduzi, em que o autor elogia Mao, a Revolução Cultural, a revolução cubana e dá explicações canhestras para o fim da URSS falam por si. Na abertura do meu artigo, eu disse textualmente que, para o autor, o socialismo só “fracassou até aqui por culpa de burocratas autoritários.” É essa a visão de todo o livro: todos os erros do socialismo real se deveram ao autoritarismo de burocratas.
Blog – Fica parecendo que o livro é crítico a Stálin? É?
Ali kamel – No meu artigo, nem menciono Stálin. Mas posso fazê-lo agora. Depois de lamentar que Stalin tenha traído os ideais de Marx e Engels, o autor lança um olhar compreensivo para ele. Está escrito lá: “Na verdade, Stálin e seus camaradas do Partido Comunista pareciam sinceramente preocupados com o bem-estar da população e com o desenvolvimento de uma sociedade socialista. Mas não admitiam a oposição, o debate democrático.” Isso soa ridículo quando sabemos que Stálin foi o responsável pela morte de milhões de homens e mulheres.
Blog – Acho que você ainda foi bonzinho (risos). Talvez foi por falta de espaço. Qual é o tratamento dispensado, por exemplo, aos EUA?
Ali Kamel – Há momentos vexatórios. Os EUA são sempre pintados como a representação do mal. Quando se refere à entrada dos americanos na Primeira Guerra Mundial, que provocou a morte de milhões de pessoas, o autor diz: “O grande vencedor foram os EUA. Seus soldados lutaram na Europa para salvar os lucros dos grandes empresários.” Isso é apenas um exemplo, pequeno.
Blog – Você sabe que conheço bem a acusação de que a crítica é sinônimo de intolerância. Dizem que você está querendo ser juiz do que pode e do que não pode estar num livro didático.
Ali Kamel – Que alguns não se importam que seus filhos estudem segundo essa cartilha, isso não é da minha conta. Que o estado brasileiro compre milhões de exemplares desse livro e os distribua aos nossos alunos da rede pública, isso é algo que um jornalista tem a obrigação de informar. A crítica dos “jornalistas” que parecem preferir que eu tivesse me calado diz muito do próprio jornalismo que praticam.
Blog – Você acusou a atual gestão do MEC?
Ali Kamel – Quem leu o artigo sabe que não. Até porque a questão é bem mais ampla e profunda, como você mesmo tem escrito em seu blog. Encerrei o artigo dizendo: “É isso o que deseja o MEC? Se não for, algo precisa ser feito”. E precisa.
http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/uma-entrevista-com-ali-kamel/