BEATRIZ MORRONE (TEXTO) E MARCELO MOURA (EDIÇÃO)
Para Miguel Nagib, advogado e fundador do Escola Sem Partido, o programa apenas reafirma princípios constitucionais
Em meio a polêmicas, Projetos de Lei inspirados no programa Escola Sem Partido tramitam no Congresso Nacional. Seu objetivo é estabelecer uma nova regulamentação para a atividade profissional de professores, proibindo o que chama de doutrinação nas escolas do Brasil. Uma das propostas, que em meados de julho entrou em consulta pública no site do Senado Federal, já recebeu mais de 360 mil votos: cerca de 180 mil contra e 170 mil a favor.
“Professores abusam da presença obrigatória dos alunos em sala de aula para promover suas próprias preferências políticas, ideológicas e partidárias”, afirma Miguel Nagib, advogado e fundador do Escola Sem Partido. “Em sala de aula, professores têm liberdade de ensinar, mas não têm liberdade de expressão.”
Conforme indicam os números da consulta proposta pelo Senado, muitos brasileiros não apoiam o Escola sem Partido. Sua bandeira foi acusada de cercear a liberdade dos professores, minar a capacidade crítica dos estudantes e tirar da escola a função de formar cidadãos. “Na cabeça deles, a escola deve somente transmitir conhecimento, sem discutir valores ou a realidade dos alunos”, diz o professor Fernando de Araújo Penna, da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). “Essa concepção é completamente absurda.”
Confira a seguir a íntegra da entrevista com Miguel Nagib.
ÉPOCA – Por que a lei proposta pelo programa Escola sem Partido deve, em sua opinião, ser aprovada?
Miguel Nagib – Segundo uma pesquisa realizada pelo Instituto Sensus em 2008, 80% dos professores admitem que seu discurso em sala de aula é “politicamente engajado”. Eles reconhecem promover suas preferências políticas, ideológicas e, eventualmente, partidárias na escola. Esses números batem com as percepções de muitos estudantes que passaram pelo sistema de ensino brasileiro nos últimos 30 anos. No Facebook, é possível encontrar declarações de professores, algumas reproduzidas no site do Escola sem Partido, que admitem adotar esse tipo de conduta. Uma delas escreve: “Como professora eu digo: minha vingança a essa bancada de direita será dentro da sala de aula”. Esses fatos não são isolados. Docentes acham que têm o direito de abusar da presença obrigatória dos alunos em sala de aula para influenciá-los. Os estudantes precisam saber que têm o direito de não ser doutrinados por seus professores. Nosso objetivo não é ensinar nenhum professor a dar aula. Nosso objetivo é dizer o que o professor não pode fazer por força da Constituição Federal e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
ÉPOCA – Qual seria o jeito adequado de ensinar as diferentes correntes políticas e ideológicas, sem que a exposição pareça proselitismo?
Nagib – O pluralismo resolve esse problema. Ao tratar de uma questão controvertida, é necessário que o professor apresente um conjunto expressivo de informações aos alunos. Ou seja, as diversas correntes, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito daquela matéria. Sem querer induzir os alunos a aderir à corrente x ou y. Ele deve apresentar fatos históricos e consistentes, baseado em boa bibliografia e da maneira mais honesta e objetiva possível.
Imagine que um professor siga as ideias de Karl Marx e use a sala de aula para tentar convencer os alunos de que a religião é o ópio do povo, como dizia o pensador. Um aluno evangélico, por exemplo, pode ter sua fé abalada. Isso não impede o professor de dizer que Marx pensava isso. É um fato, é um dado da realidade. O que ele não pode é se aproveitar de um tópico tratado legitimamente para tentar convencer os alunos de que o filósofo estava certo.
ÉPOCA – Como, segundo o projeto, os professores devem apresentar diferentes pontos de vista?
Nagib – Nosso projeto estabelece o seguinte: “Ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, o professor apresentará aos alunos, de forma justa – isto é, com a mesma profundidade e seriedade –, as principais versões, teorias, opiniões e perspectivas concorrentes a respeito”. Em nenhum momento o professor é proibido de dar sua opinião. Ele só não pode querer impor essa opinião aos alunos. Quando o professor apresenta um leque de perspectivas, correntes e opiniões, ele amplia o horizonte de conhecimento dos alunos. Permite, portanto, que eles formem uma visão mais crítica, menos superficial e menos sectária das questões que são postas em sala de aula. Qual a diferença entre apresentar opiniões e impor opiniões aos alunos? Muitas vezes é a diferença que existe entre elogio e assédio. Um chefe diz que uma funcionária está muito elegante. De repente, fala com um tom diferente e a funcionária pode achar que está sendo assediada.
ÉPOCA – Na opinião do senhor, a escola deve propor discussões sobre assuntos polêmicos, como aborto, legalização das drogas e violência de gênero?
Nagib – A única restrição de conteúdo que nosso projeto contém é com relação a temas que possam implicar a violação ao direito dos pais sobre a educação religiosa e moral de seus filhos. E não é uma restrição que decorra do nosso projeto, mas da Convenção Americana de Direitos Humanos, cujo tratado foi assinado pelo Brasil. Nosso projeto apenas repete o que está lá.
ÉPOCA – “Violar o direito dos pais à educação religiosa e moral” não é um conceito amplo e subjetivo? Não deixaria de fora questões importantes aos jovens, como aborto?
Nagib – Eu não sei dizer. Pode ser que sim. Depende da abordagem que for feita. Se eu matriculo meu filho numa escola particular católica, é porque quero que ele tenha formação coerente com os princípios dessa religião. Então, não me importaria se o professor apresentasse o aborto sob a perspectiva religiosa. Na escola pública, é diferente. É um espaço que deve estar aberto a toda a sociedade. Lá, se o professor fizer isso, ele poderá ferir a sensibilidade de uma família que não concorda com os princípios do catolicismo. Digo isso em relação a aulas de disciplinas regulares, como história, português ou matemática. Por força da Constituição, a escola pública de ensino fundamental é obrigada a oferecer ensino religioso aos alunos, mas a matrícula nessa disciplina é facultativa. Esse é outro debate controverso. Até hoje, não se sabe ao certo o que quer dizer esse ensino religioso.
ÉPOCA – O projeto de lei diz que alguns docentes incitam estudantes a adotar “padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente moral sexual – incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis”. O amadurecimento e a gradual autonomia conquistada pelos jovens não os torna sujeitos a construir opiniões diferentes daquelas que prevalecem em suas famílias? É possível afirmar que o professor é responsável ou corresponsável por isso?
Nagib – Não dá para saber se o professor é corresponsável por isso. E concordo que, na medida em que o jovem amadurece, ele adquire ideias próprias. O que não se pode admitir é a interferência de um sujeito estranho à relação familiar para acirrar um eventual conflito entre pais e filhos. Quem terá de arcar com as consequências dos atos que aquele indivíduo em formação praticar são os pais, não o professor. A educação de um jovem não pode ser conduzida em direções opostas por duas pessoas ao mesmo tempo. Em matéria de religião e de moral, ou bem educa a família, ou bem educa outra pessoa. O professor entra e sai da vida do aluno num período de seis meses, um ano. É justo, natural, legítimo e lógico que essa prerrogativa seja exclusiva da família.
ÉPOCA – Em um país democrático, é comum – e saudável – existir divergência de opiniões em todas as instituições sociais. Como esse projeto interfere no papel da escola como um espaço plural de ideias?
Nagib – Não tenho dúvida de que a escola deva ser um lugar acolhedor para todo mundo. Mas nosso projeto não trata disso. Ele apenas explicita limites que já existem. Por exemplo: o primeiro dever diz que “o professor não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária”. Se a presença do aluno é obrigatória em sala de aula, o professor não pode dizer tudo o que pensa naquele espaço. Caso contrário, estará violando o direito à liberdade de consciência e de crença, garantido pela Constituição Federal. Tudo aquilo que nossa lei diz já é obrigação do professor. E eu desafio qualquer um a provar o contrário.
ÉPOCA – O programa Escola sem Partido diz que professores não têm liberdade de expressão, apenas liberdade de ensinar. O senhor poderia explicar essa afirmação?
Nagib – O que é liberdade de expressão? Aquela que a gente exerce no Facebook. Liberdade de dizer qualquer coisa sobre qualquer assunto. Se o professor tivesse esse direito em sala de aula, ele não poderia ser obrigado a transmitir aos alunos o conteúdo da sua disciplina. Professores poderiam falar sobre futebol, cinema, literatura ou ficar em silêncio, porque ninguém é obrigado a exercer essa liberdade. Se existisse liberdade de expressão em sala de aula, não existiria ensino. Se o professor pudesse dizer qualquer coisa sobre qualquer assunto, a liberdade de consciência e de crença de sua audiência cativa seria letra morta. Digo isso para deixar claro o seguinte: se o professor tivesse liberdade de expressão em sala de aula, nossa proposta seria inconstitucional do começo ao fim. Em compensação, não existiria ensino.
ÉPOCA – Por que, na opinião do senhor, o projeto tem sofrido críticas?
Nagib – A colocação do cartaz em sala de aula preocupa professores que abusam da liberdade de ensinar. Eles temem que sua prática docente comece a ser confrontada quando os alunos conhecerem os deveres dos professores.
ÉPOCA – Críticos da proposta a acusam de ser subjetiva e de abrir brecha para diversas interpretações. O senhor concorda?
Nagib – Não existe lei no universo que não possa ser mal aplicada. A nossa não seria exceção. Acho que o texto que apresentamos é bom e claro, mas isso não significa que não possa ser melhorado. De qualquer maneira, uma margem de subjetividade sempre vai existir.
ÉPOCA – Como fiscalizar a conduta de professores em sala de aula?
Nagib – Os alunos poderão fiscalizar a conduta de seus professores. Mas, em primeiro lugar, o próprio professor será o fiscal de suas ações. Se a lei for aprovada, os professores terão de fazer uma reflexão profunda sobre os limites éticos e jurídicos da atividade docente. Serão obrigados a adotar uma atitude mais prudente em sala de aula. Eles pensarão: “Se eu sei que os meus atos podem ser mal interpretados, então vou agir de uma maneira mais prudente”. Todo mundo faz isso no ambiente de trabalho. A vida toda a gente faz isso.
http://epoca.globo.com/ideias/noticia/2016/08/os-estudantes-tem-direito-de-nao-ser-doutrinados-por-seus-professores.html
Para Miguel Nagib, advogado e fundador do Escola Sem Partido, o programa apenas reafirma princípios constitucionais