A Secretaria de Estado da Educação de São Paulo instaurou há duas semanas sindicância em três escolas públicas da Grande São Paulo para apurar a participação de colombianos em palestras e debates em defesa das idéias dos dois principais grupos guerrilheiros da Colômbia, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o Exército de Libertação Nacional (ELN). As sindicâncias referem-se a palestras feitas nos últimos nove meses em escolas de Osasco.
A secretaria está ouvindo diretores, professores e funcionários sobre as circunstâncias em que ocorreram essas reuniões. Defendendo as guerrilhas, os colombianos rebateram as acusações de envolvimento delas com o narcotráfico e criticaram o Plano Colômbia – projeto incentivado e parcialmente financiado pelos EUA contra a indústria da droga no país e considerado pelos representantes dos rebeldes um pretexto para intervenção militar norte-americana na América Latina.
O Estado apurou que as palestras são parte de uma ofensiva diplomática que vem sendo empreendida por porta-vozes ou colaboradores das Farc e do ELN no Brasil. Dois colombianos que se apresentam como porta-vozes dos grupos no Brasil afirmaram ao Estado que nos últimos dois anos “companheiros” vinculados à guerrilha estiveram em mais de 20 cidades, de pelo menos sete Estados brasileiros, defendendo seus pontos de vista em escolas públicas, universidades e sindicatos.
O objetivo das visitas, segundo Milton Hernández, do ELN, é bem definido: tentar forjar uma mobilização internacional de oposição ao Plano Colômbia que conte com o apoio de brasileiros. “Os povos da América Latina precisam criar uma rede de solidariedade, organizar-se, conscientizar-se e promover manifestações. Essa é a importância do trabalho”, disse.
Falando um português razoavelmente correto, Hernandéz, de 48 anos (há 18 na luta armada) afirmou já ter estado em cinco debates escolares no Brasil, desde 1999. Visitou Recife, São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Fortaleza. “Nós acompanhamos as palestras, atualizamos as pessoas e contamos as últimas coisas.” Segundo ele, há outros seis representantes do ELN no Brasil.
Mauricio Valverde, da comissão internacional das Farc, declarou já ter participado de palestras em mais de 20 cidades brasileiras desde que chegou ao País, há 11 meses. Valverde fala mal o português. “Temos convites de todo o Brasil, de Fortaleza, Manaus, Porto Alegre, Florianópolis, Pelotas, Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Santos, Rio de Janeiro, São Paulo.” Sua agenda é dividida com outros colombianos.
Nem as Farc nem o ELN têm representação legal no Brasil. Seus porta-vozes ou colaboradores vêm participando de palestras sempre sob um regime de discrição e mesmo de certo sigilo. “Desde que o Oliverio (Medina) foi preso, passamos a ter mais cuidado com entrevistas abertas, debates muito públicos, em não deixar filmagens, gravações, fotografias porque isso ajudaria a Polícia Federal a fazer seu trabalho”, disse Valverde. Oliverio Medina era até o ano passado o mais conhecido representante das Farc no País. Mas depois de ter ficado detido por alguns dias em razão de problemas com visto – conforme disse na época a PF – foi proibido de falar aqui em nome da guerrilha. “Não nos identificamos (em público), nos apresentamos apenas como colombianos”, acrescentou Hernández, que, como Valverde, usa um codinome.
Pela lei 6.815/80, o Estatuto do Estrangeiro, todo estrangeiro que estiver no Brasil com visto de turista não pode fazer pronunciamentos políticos ou proselitismo que envolvam questões de seu país. O artigo 107, diz que “o estrangeiro admitido em território nacional não pode exercer atividade de natureza política nem se imiscuir em negócios públicos do Brasil”.
Segundo o delegado Marco Antônio Veronezzi, da Divisão da Polícia Marítima e Aérea de Fronteiras, da PF, a lei determina que o estrangeiro com visto de turista (ou em situação irregular) flagrado nessas circunstâncias seja convidado a deixar o país. Perguntado sobre como os colombianos envolvidos com a guerrilha entram no Brasil, Hernández, foi econômico: “Há esquemas.”
Muitos dos debates são promovidos por grupos brasileiros de esquerda. Um dos mais ativos nessa missão, o Comitê Permanente de Solidariedade aos Povos em Luta, atua em São Paulo, onde desde julho de 2000 organizou mais de 40 palestras na capital e Grande São Paulo, segundo Magno de Carvalho, um dos articuladores do grupo e presidente do Sindicato dos Trabalhadores da USP. Em boa parte dessas palestras, colombianos ligados à guerrilha estiveram presentes, entre eles Medina.
Carvalho esteve no início de junho em um encontro escolar em Osasco ao lado de um colombiano. O visitante foi apresentado aos alunos como um “companheiro” ligado aos movimentos populares da Colômbia. Receoso, ele não quis identificar-se. Aconselhado pelo colega brasileiro, também não falou com a reportagem para evitar mais exposição. A diretoria da escola pediu que o nome da instituição não fosse revelado, ao saber das restrições legais impostas aos estrangeiros.
O Comitê de Solidariedade é uma coalizão com um total de 30 grupos participantes, entre os quais o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), PC do B, PSTU, além de sindicatos e ONGs. O comitê tem também uma base no Rio de Janeiro, onde palestras sobre o tema já foram organizadas nas favelas da Rocinha, de Vilar Carioca e do Morro Dona Marta.
Segundo o coordenador do comitê carioca, Roberto Magalhães, de 31 anos, esses encontros não contam com a participação de estrangeiros.
Em Brasília, Fortaleza, Porto Alegre e Belém outros grupos anti-Plano Colômbia também têm organizado reuniões públicas sobre o tema. Os organizadores afirmam que não recebem colombianos nesses encontros. Em alguns casos, porém, como em Brasília, o líder de um dos grupos disse manter contato regular com membros das Farc. Os militantes brasileiros destes grupos dizem que não têm compromissos com as guerrilhas e apenas partilham posições sobre o plano.
O Estado assistiu a uma palestra da colombiana Teresa (que falou à reportagem sob as condições de não ter seu nome revelado e de ser citada apenas como uma militante cristã da Colômbia). A palestra ocorreu no final de março, em uma escola de Osasco. Arranhando um portunhol, Teresa falou a cerca de 200 alunos sobre a história dos movimentos revolucionários da América Latina, lembrou o herói Simon Bolívar e criticou os “imperialistas” e as “elites” colombianas. Sobre a guerrilha colombiana, disse: “São grupos armados por uma consciência de soberania e libertação nacional.”
Sobre o plano, acrescentou ser um pretexto para a internacionalização da Amazônia.
“O que a gente vê é que a maioria das coisas a TV distorce. Na palestra, eles esclareceram que a guerrilha é uma coisa e o tráfico é outra”, acredita Renato Factoricanova, de 22 anos, ex-aluno de uma escola estadual de Osasco, que assistiu no ano passado a uma palestra de Tereza. Os EUA acusam as duas guerrilhas de manterem ligação com narcotraficantes. A PF brasileira diz ter provas de que uma das frentes das Farc está ligada ao crime.
A opinião de Factoricanova parece estar longe de ser exceção. Segundo Carvalho, cada vez mais professores e alunos têm-se interessado pelas denúncias contra o Plano Colômbia. Alguns, conta ele, já formaram novos comitês. Três deles, embora embrionários, funcionam em Osasco, em Mauá e em São Miguel Paulista. O secretário-adjunto da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, Hubert Alquéires, afirmou que a lei estadual nº 10.309/99 proíbe que as escolas públicas organizem palestras que possam causar polêmica ou preconceitos sobre temas religiosos, políticos, econômicos e culturais. “Essas palestras desobedecem frontalmente a lei”, disse, depois de conversar com os diretores das três escolas. “Não é adequado expor os alunos a um discurso tendencioso, que só leve para um lado”, disse. “Não podem entrar nas escolas.”
Procurados pela secretaria, os diretores das escolas sob sindicância disseram, segundo Alquéires, que haviam sido informados pelos organizadores (o comitê) de que os vistantes falariam sobre o Mercosul e questões ligadas à América Latina, mas acabaram avançando sobre pontos não previstos. Os diretores garantiram também que não sabiam que entre os convidados estaria alguém vinculado à guerrilha.
Alquéires enviou há duas semanas um e-mail para os 89 dirigentes de ensino do Estado recomendando cuidado na esolha de palestras.
Publicado n’O Estado de São Paulo, edição de 22.07.2001
Fonte: http://www2.uol.com.br/aprendiz/n_noticias/noticias_educacao/id230701.htm#2