Resolvi conferir por conta própria. O país anda meio nervoso, pensei cá comigo, vai que haja certo exagero neste barulho todo em função da “ideologização” da prova do Enem. Lá fui eu, lembrar os velhos tempos de professor de cursinho pré-vestibular (faz tempo…) e fazer a prova. Concentrei-me na prova de “Humanidades e suas tecnologias”, e fui de espírito aberto. Nada de procurar pelo em casca de ovo. O resultado foi o seguinte: das 45 questões, 11 me pareceram claramente ideológicas. Um punhado de lugares-comuns feitos de citações de Paulo Freire, David Harvey, Slavoj Zizek, além de artigos opiniáticos em revistas como Caros Amigos e Diplomatique.org.
Haver 25% em questões ideológicas não é propriamente uma tragédia, e seguramente não foi a primeira vez que aconteceu. Mas é inaceitável. Por óbvio, 100% desses 25% pendiam para o lado das ideias do partido do governo. Dito isso, deixo claro que acharia igualmente patético se houvesse 25% de questões ideológicas com sinal invertido. Mas ninguém precisa se preocupar com isso. Não encontrei nenhuma.
Para ser claro: ao criticar o viés ideológico, em uma prova, não estou sugerindo nada parecido com a existência de uma verdade histórica. Estou calejado demais para acreditar nessas coisas. Penso que é possível, sim, certo cuidado acadêmico. O respeito a fontes, a análise ponderada dos argumentos e das séries estatísticas.
Sigo o caminho de Max Weber, em seu memorável discurso sobre a “Ciência como vocação”, na Universidade de Munique, em 1917, para quem a sala de aula jamais deveria abrigar o “profeta” e o “demagogo”. Que a ciência perseguisse um tipo especial de neutralidade: quanto à oferta do “sentido”. O sentido pertence ao indivíduo, em última instância. O professor que não use sua posição de poder para impor visões de mundo aos alunos. Fazer isso não passa de ato de covardia.
O truque mais comum de quem defende a ideologização do ensino é dizer que, no final das contas, tudo é ideologia. Isso simplesmente não é verdade. O que há, por exemplo, de ideológico em mostrar imagens de um calendário medieval, como faz a questão 5, e perguntar sobre a concepção de tempo que elas expressam? Trata-se simplesmente de um exercício de interpretação histórica. Bem elaborado, diga-se de passagem.
O caráter ideológico da prova não está em citar Milton Santos, dizendo que a globalização é perversa e geradora de desemprego. O problema é a “naturalização” da afirmação: apresentar como um fato aquilo que é apenas a opinião política do autor. Algo próximo a um valor, no sentido weberiano. E isso, infelizmente, é o que se passou na prova do Enem.
Outro dado inquietante é perceber uma prova feita a partir de citações de segunda mão, retiradas da internet ou de livros de claríssimo viés político, sem referência a fontes (confiáveis ou não). É o caso da questão 20, em que Zizek refere-se a um “fato” cuja única “comprovação” é a própria falação de Zizek. No livro mencionado, ele não revela sua fonte. Não tenho a menor ideia se o evento citado é ou não verdadeiro. Imagino que nem os autores da pergunta. Eles parecem simplesmente acreditar em Zizek. E isso não pode ocorrer em uma prova oficial como o Enem.
Há uma série de questões simplesmente mal formuladas. Exemplo: a questão 34 traz um misterioso texto, do site Diplomatique.org, tratando da proibição de um “aplicativo de compartilhamento de carros” (seria o Uber?) na Alemanha e de serviços “americanos” de informática (o Google? O Outlook?) pelo governo chinês. Com base nessas menções, pergunta-se qual é a preocupação dos países com a “espionagem”, obrigando o pobre aluno a marcar a resposta “segurança de dados”. Tentei entender que relação poderia haver entre algo como o Uber e a segurança de dados, na internet, mas logo desisti.
Sobre a polêmica questão acerca do “conceito de mulher”, tenho uma opinião eventualmente distinta da maioria dos críticos do exame. Não a coloquei na minha lista de questões ideológicas. Não o fiz exatamente por ela não “naturalizar” a posição de Simone de Beauvoir.
O texto, retirado do livro Segundo sexo, diz que o “feminino” surge como o “produto intermediário entre o macho e o castrado”. Ok, a frase é esquisita. Daria boas discussões, talvez uma boa performance, ou quem sabe não signifique coisa nenhuma. Mas é a opinião de Beauvoir. Qualquer aluno mais esperto marcaria a opção “c”. Mesmo sem ter (como eu, reconheço) a mais remota ideia do que venha a ser essa meia distância entre o macho e o castrado.
Em resumo, penso que o Inep, responsável pela avaliação, e o Ministério da Educação deveriam rever o modo de elaboração da prova. Não acredito, sinceramente, que os profissionais do Inep, a começar pelo seu presidente, desejassem fazer uma prova ideológica ou de menor qualidade. Acho apenas que as coisas por vezes saem do controle. E é preciso verificar o que está acontecendo.
Não me alinho entre aqueles que imaginam existir uma guerra do fim do mundo no Brasil. Erros como esse foram cometidos, igualmente, em outros governos. Haja vista a proliferação de livros didáticos perversamente ideológicos, ao estilo dos Nova história crítica e História e vida integrada, que já circulavam, com a chancela do MEC, muito antes do atual governo. E acho que seria igualmente ruim, para o Brasil, se algum grupo ideologicamente oposto ao atual resolvesse “dar o troco”, uma vez no poder, produzindo uma educação politicamente orientada do seu próprio jeito.
Há um bocado de gente boa, na Academia Brasileira, querendo ajudar. Preocupada com o rigor acadêmico. Disposta a não se deixar levar por pequenos apetites políticos e ideológicos, e fazer uma prova que dê orgulho ao Brasil. Que sirva de referência a nossos professores e estudantes. Que acabe, de uma vez por todas, com esse contínuo exercício de “simulação intelectual”, segundo o qual nossos estudantes devem imaginar qual a melhor resposta “de esquerda” para cada pergunta de um exame público.