Por Miguel Reale
Consultando mais uma vez o relógio, o velho mestre de História Moderna e Contemporânea entrou apressado no anfiteatro que havia sido destinado pelo Diretório Acadêmico para a realização dos exames finais. A sala estava apinhada, como num dia de festa, pairando no ambiente a nervosa expectativa de uma representação teatral. Era a primeira vez que se realizavam provas segundo as disposições dos novos estatutos, baseados na fórmula salvadora: “A Universidade é do estudante”, quando antes se pensara “erroneamente” que ela fosse do povo para os estudantes e os valores da ciência e da cultura.
– “Desculpem-me, mas um acidente de trânsito…”
– “Não se preocupe, professor, atalhou o presidente da banca examinadora, as providências todas já foram tomadas. A comissão de exames está aqui, pronta para proferir o julgamento com base nas respostas dadas às suas perguntas.
“Há uma comunicação prévia a fazer-lhe. Como sabe, temos andado absorvidos no estudo da reorganização universitária e da reformulação do currículo de História, razão pela qual bem reduzido foi o tempo disponível para o preparo da matéria. Diante dessa situação conjuntural, o Diretório Acadêmico houve por bem deferir o pedido feito pelos alunos, há dez dias, reduzindo à metade o programa dos exames. Ficou assente que a argüição de hoje versará sobre os pontos de número par.”
– “Não compreendo como terão podido estudar a história assim, aos saltos, sem atender a certa linha de continuidade que, pelo menos sob dada perspectiva metodológica… “
Não o deixaram terminar a frase. Um dos examinadores, que parecia ser o líder intelectual da mesa diretora dos trabalhos, exclamou com ênfase:
– “É compreensível e até certo ponto justificável a sua perplexidade! A sua geração vê a história com o espírito do passado. Nós a vemos com os olhos do futuro. Qualquer episódio isolado vale na medida em que nos permite a intuição do amanhã que nos pertence!”
Uma salva de palmas acolheu essas palavras, enquanto nos lábios do velho professor brotava um sorriso, que parecia emergir da noite dos tempos, um misto da percuciente ironia socrática e da bonomia humanística de Montaigne.
– “Se essa é a conjuntura, sussurrou, passemos ao exame dos pares… Eis aqui um belo tema para o primeiro examinando: “O liberalismo econômico de Adam Smith”. Que diz o colega sobre o assunto?”
O aluno, após um longo e estudado silêncio, respondeu:
– “Eis aí uma questão que nos permite compreender a grandiosidade da obra de Karl Marx, o gênio que soube desmascarar a ideologia dos economistas a serviço dos interesses da burguesia inglesa, que precisava da capa da liberdade econômica para impor salários de fome ao proletariado das tecelagens e das minas de carvão. Foi em OCapital que Marx, em 1848…”
– “Perdão, observou o professor, há aí um equívoco. O senhor está querendo se referir, naturalmente, ao Manifesto Comunista de Marx e Engels, pois O Capital só apareceu mais de vinte anos depois… “
– “E que importa? indagou abruptamente o presidente da banca. O seu reparo é bem o reflexo de uma mentalidade ultrapassada, para a qual o que interessa são os pormenores, os aspectos secundários dos fatos, e não o seu espírito, entendido em função do futuro!”
Nova explosão de aplausos acolheu essa proclamação, enquanto o líder intelectual da banca retomava a palavra, com o mesmo tom retórico:
– “Muito bem, presidente! Num exame o que interessa é verificar se o jovem está devidamente conscientizado e se é capaz de dar aos acontecimentos uma interpretação significativa para a práxis revolucionária. A meu ver, o examinando sabe, a respeito de liberalismo econômico, o essencial e indispensável, revelando uma clara tomada de posição perante o fato histórico, que só vale, repito, como intuição do futuro!”
Enquanto ainda ressoavam palmas e gritos de aplausos, levantou-se o velho mestre, tão sereno e altivo que parecia de redobrada estatura, os olhos fixos na assembléia tumultuante. Como por encanto fez-se silêncio, e o professor falou, com voz firme, mas repassada de emoção.
–“Não creio que haja necessidade de prosseguir nos exames. Os iluminados do futuro já escondem, misteriosamente, no fundo da consciência, os arcanos todos do passado. Não haverá mais necessidade de estudo, de vigílias, de dúvidas, de inquietações. Tudo será de antemão modelado e medido segundo uma intuitiva e desveladora imagem do futuro. Eu prefiro cultivar os meus mortos e as minhas lembranças, porque são eles que me auxiliam a compreender o presente e a construir com mais perspectiva e segurança os dias de amanhã.”
E retirou-se, cruzando corpos e olhos inquietos de estudantes. Uma voz ressoou no anfiteatro: “Fora, reacionário!”, mas ficou sem eco.
Os moços seguiram-no, com os olhos, até a porta, e sentiram que algo deles mesmos se perdia, a linha do horizonte que lhes possibilitava a determinação da própria juventude.
(Extraído do livro Problemas de Nosso Tempo; contribuição enviada ao site por Davi J. Dias)