Reportagem de capa da revista Época, publicada em 22 de outubro de 2007.
Boa parte dos livros didáticos apresenta distorções ideológicas. Por que elas existem e como comprometem a educação.
ALEXANDRE MANSUR, LUCIANA VICÁRIA E RENATA LEAL
A catarinense Mayra Ceron Pereira, que mora na cidade de Lages, se sentiu incomodada com a lição de casa do filho, no início do ano. Aluno da 7a série do colégio Bom Jesus, uma rede privada do sul do país, Gabriel, de 13 anos, tinha de definir o que é a mais-valia. Ela folheou o livro Terra e Propriedade, da coleção História Temática, que ele usa na escola, e encontrou uma foto de José Rainha, líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). “Ele aparecia apenas como líder social”, diz Mayra. “Não havia a informação de que foi condenado pela Justiça.” Em uma leitura mais atenta, ela se incomodou ainda mais com o que identificou como maniqueísmo nos textos. “Os poderosos são sempre os vilões, e os proletários os coitados. Não acho saudável crescer dividindo o mundo entre vítimas e culpados”, afirma Mayra, que é vereadora do partido Democratas (ex-PFL). “Eu não quero um livro neoliberal. Quero que deixem meu filho desenvolver seu julgamento no futuro. Nesse livro, as pessoas já vêm julgadas e condenadas.”
Na central do colégio, em Curitiba, a informação é que o livro está sendo reavaliado como qualquer outro. “Estamos com essa coleção há oito anos e ela é uma das mais conceituadas na área. Pode ter problemas, mas nenhum livro é 100%”, afirma o educador Pedro Gardim, coordenador pedagógico do colégio. Segundo ele, a informação sobre José Rainha não estava no livro porque a edição usada era anterior à condenação. “O livro fala do MST, que é um movimento polêmico, mas importante para discutir o tema da terra. Assim como, mesmo sendo uma escola católica, falamos da Inquisição.” Segundo Roberto Catelli, um dos autores do livro, a obra não faz nenhuma apologia a José Rainha. Para Catelli, mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), o fato de o livro reproduzir trechos da versão em quadrinhos de O Capital, do filósofo e economista Karl Marx, sobre o conceito de mais-valia, também não é pregação ideológica. “O texto deixa explícito que se trata do pensamento de um autor, e não de uma verdade única”, diz. “O objetivo é que o aluno tenha acesso ao pensamento marxista, básico no estudo das ciências humanas.”
O caso suscita uma discussão relevante para as famílias de 42 milhões de estudantes do ensino fundamental e médio no Brasil, nas redes pública e privada. Afinal, o que se ensina às crianças e aos adolescentes do país? Há um mês, um artigo do jornalista Ali Kamel despertou a polêmica, ao transcrever trechos do livro Nova História Crítica no jornal O Globo. Para Kamel, o livro é uma “tentativa de fazer nossas crianças acreditarem que o capitalismo é mau e que a solução de todos os problemas é o socialismo”. ÉPOCA analisou o livro e encontrou trechos problemáticos, como “Adam Smith acreditava que as forças do mercado agiriam como uma mão invisível a regular a economia. Em suma, o vale-tudo capitalista promoveria o progresso geral de forma harmoniosa”, uma visão estereotipada do capitalismo, como um sistema desprovido de ética. Nova História Crítica foi um campeão de vendas. Teve 9 milhões de exemplares distribuídos desde 1998 pela rede pública de ensino e 1 milhão pela rede particular. Estima-se que 30 milhões de adolescentes estudaram História com ele. O autor, Mario Furley Schmidt, não se pronunciou. Arnaldo Saraiva, presidente da editora Nova Geração, respondeu que o livro “não é o único nem o primeiro que questiona a permanência de estruturas injustas e que enfoca os conflitos sociais em nossa história”. Disse também: “Não publicamos livros para fazer crer nisso ou naquilo, mas para despertar nos estudantes a capacidade crítica de ver além das aparências e de levar em conta múltiplos aspectos da realidade”. O livro de Schmidt já não faz parte da lista de recomendações do MEC. Fora aprovado, com ressalvas, pelas bancas que analisam os livros didáticos, em 1998, 2001 e 2004. Em 2007, quando a categoria “com ressalvas” acabou, ele foi rejeitado.
Mas há outros, com teor parecido. ÉPOCA fez um levantamento de 20 livros didáticos e 28 apostilas de História e Geografia adotados por escolas públicas e privadas. Em um país democrático, pode-se esperar que os títulos reflitam o amplo espectro ideológico e político da sociedade. Não é o que ocorre. A maioria dos livros – em especial os de História – é simpática ao socialismo e apresenta o livre mercado como um modelo econômico gerador de desigualdade e pobreza. Embora a ênfase seja desequilibrada para a ideologia de esquerda, isso faz parte do jogo democrático. O dado que assusta é a quantidade de distorções que os autores fazem em nome da visão socialista. Existem dois tipos de problemas. O primeiro é a omissão. Ao tratar de revoluções socialistas, como a da China e a de Cuba, vários livros deixam de mencionar o caráter opressivo e ditatorial desses regimes. Além disso, a ideologia leva alguns autores a publicar informações erradas, como dizer que a globalização aumentou a pobreza mundial. Segundo dados da ONU, a abertura do comércio internacional da década de 90 fez com que a renda per capita dos países pobres crescesse mais que a dos países desenvolvidos (confira nos quadros).
O caso mais impressionante é o do material elaborado pelos professores da rede estadual do Paraná no programa Livro Didático Público. Seus livros vão para 450 mil alunos do ensino médio. Há até um livro de Educação Física com um capítulo intitulado “Faço esporte ou sou usado pelo esporte?”, em que a atividade física é apresentada como ferramenta de exploração capitalista. “Regras: é preciso respeitá-las para sermos bons esportistas. Em nossa sociedade, devemos ser submissos às regras impostas pela classe dominante”, escreve o autor. “Em nosso convívio social, devemos respeitar nossos colegas (…), contribuindo com o êxito da equipe ‘de trabalho’, isso quer dizer ‘enriquecer cada vez mais os patrões’.” O governo paranaense diz que não houve orientação ideológica para os autores. “Algumas perspectivas podem ser vistas como reducionistas, mas todas as realidades existem”, diz o filósofo Jairo Marçal, coordenador do programa. “Seria complicado assumir o relativismo que acaba aceitando todas as posições como corretas. Não se pode mais fazer uma crítica ao modelo econômico que está colocado?”
Quem escreve livros como esses? Escritores revolucionários? Nem tanto. O autor dos capítulos de Educação Física do Paraná é Gilson José Caetano, de 30 anos, casado com uma professora de Educação Física e pai de uma menina de 2 anos. Ele é professor no município de Turvo, com 14 mil habitantes. Sua formação é o curso de Educação Física de uma universidade particular de Palmas, no interior do Paraná. Caetano é diretor da Escola Joanna s Lechiw Thomé, com 96 alunos entre a 5a e 8a séries. Para chegar lá, todas as manhãs percorre 17 quilômetros de estrada de terra. Metade do caminho dentro de uma van contratada pelos professores, metade de carona no ônibus escolar dos alunos. À tarde, leciona para 180 estudantes do Colégio Estadual Edite Cordeiro. À noite, faz bico como instrutor de uma academia de ginástica. “Aqui no interior é difícil alguém notar o nosso trabalho. O livro foi uma grande oportunidade”, diz.
Para escrever seu livro de esporte com críticas ao capitalismo, Caetano diz ter escolhido “um recorte baseado no materialismo histórico dialético”, referindo-se à concepção de História desenvolvida por seguidores de Karl Marx. Ele afirma que o marxismo seria a base teórica de consenso entre os professores que criaram as diretrizes da Secretaria de Educação do Paraná. “Todo livro didático público tem uma visão. Se partirmos da neutralidade, não pensamos um aluno crítico”, diz. “Isso não significa que eu seja comunista. Nem me interesso muito por política.” Caetano se diz um atleta frustrado. “Praticava todos os esportes, mas nunca descobria minha habilidade. Meu professor de Educação Física se preocupava tanto em ajudar os alunos que resolvi ser como ele. Quero fazer algo pela comunidade por meio da formação dos estudantes.”
Em uma apostila do sistema Anglo, os autores Claudio Vicentino e José Carlos Moura, de São Paulo, escrevem: “o império da sociedade de consumo é um mundo em que alguns são senhores do mercado e a esmagadora maioria sua vítima”. Por e-mail, eles explicaram seu texto. “Consideramos que esses problemas transcendem uma visão ideológica, seja ela de direita ou de esquerda, e inclusive por isso assinalamos na mesma página, logo a seguir, que nem o socialismo real e nem o capitalismo foram capazes de resolver esses grandes impasses da humanidade.”
Já a professora Katya Picanço escreveu um capítulo intitulado “Ideologia” em uma apostila de Sociologia distribuída na rede pública do Paraná. Em sua obra, a autora afirma que “na sociedade capitalista, o poder público está a serviço da classe dominante, via seus representantes no governo”. Na opinião de Katya, “é óbvio que os políticos estão a serviço da classe dominante, senão a sociedade teria mudado”. Roberto Catelli, no livro Terra e Propriedade, descreve a revolução chinesa de Mao Tsé-tung, mas não menciona que seu regime opressor promoveu um dos maiores massacres da História. Catelli afirma que optou por um recorte econômico, não político. Sua resposta é a mesma em relação à ditadura de Fidel Castro: “Só mencionamos o bloqueio econômico dos Estados Unidos a Cuba, uma questão política, porque ele teve impacto direto na economia do país”.
Alguns autores, diante das críticas, afirmam que os livros didáticos com problemas serão revisados. É o caso de Uma História em Construção, que tem a ilustração de um americano esmagando o Brasil. O autor, José Rivair Macedo, diz que vai reformular o conteúdo e a parte gráfica. “Estamos revendo uma série de aspectos conceituais e formais, de modo a tornar a obra mais objetiva e em consonância com as atuais propostas de ensino”, afirma. Procuradas por ÉPOCA, as editoras Saraiva, Scipione e Moderna não quiseram se manifestar.
A doutrina política de esquerda não é o único problema do mercado didático. O livro Banzo, Tronco & Senzala, da editora Harbra, foi recolhido da rede de Brasília em 2003 porque sua ilustração de capa trazia escravos negros com traços faciais semelhantes aos de macacos. No início de 2003, o caso foi denunciado por um pai de aluno ao senador Paulo Paim (PT-RS) – que procurou o governo do Distrito Federal. Embora não fosse distribuído pelo governo, muitas escolas compravam o livro com orçamento próprio. “O caso é chocante porque é extremo. Mas não é difícil achar ilustrações que embrutecem a face dos negros nos livros didáticos”, afirma a educadora Andréia Lisboa de Sousa, doutoranda em currículos escolares na Universidade do Texas.
Em outra coleção excluída depois de ser distribuída por três anos pelo MEC, os índios são retratados como seres incivilizados, e os nordestinos como culpados pela pobreza nas grandes cidades. No volume para a 6a série de Uma História em Construção, lê-se: “Comparando o tipo de vida dos indígenas com o dos civilizados, notamos grandes diferenças” (o termo civilizados, segundo consenso dos antropólogos, é preconceituoso, pois implica que os índios não têm civilização. Seriam, portanto, selvagens). No livro para a 7a série, o autor escreve: “A fome não diminuiu no Nordeste, mas foi trazida para o Sudeste e para o Sul. Quem trouxe? Os 28 milhões de migrantes que marcharam para as regiões desenvolvidas”.
Quanto eles vendem |
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O segmento de livros didáticos deverá movimentar R$ 1,2 bilhão entre 2007 e 2008. Cerca de 58% do faturamento vem da venda para o governo federal |
“Livros que induzem a preconceitos e estereótipos levam a uma formação errada, uma visão distorcida do mundo. Formam pessoas racistas, com xenofobia. As idéias de que no Nordeste só há seca e miséria e que todos os alemães são nazistas não ajudam o aluno a compreender o mundo”, afirma a historiadora Margarida Matos, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ela coordenou a banca que excluiu o livro Nova História Crítica da lista do MEC neste ano. A visão doutrinária foi apenas um dos problemas identificados. Schmidt, o autor, faz ainda abordagens estereotipadas de períodos e personagens históricos e abusa de expressões coloquiais. No livro para a 5a série, ele especula sobre as razões da expansão do cristianismo: “Muitas pessoas ricas começaram a adotar o cristianismo. Estavam cansadas de sua vida vazia, de egoísmos e de futilidades. As orgias alegravam por um tempo, mas depois vinha a depressão”.
Os escritores de livros didáticos são os maiores vendedores de livros do Brasil. Segundo levantamento da Câmara Brasileira do Livro e do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, 53% dos 310 milhões de exemplares vendidos no ano passado no país se encaixavam nessa categoria. O segmento representa mais da metade do faturamento do mercado editoral brasileiro. Autores que estão há décadas no mercado já venderam milhões de exemplares e formaram gerações. Até autores novos no ramo podem alcançar esse volume em apenas uma única venda para o programa do governo federal de distribuição de livros para escolas da rede pública. São números expressivos para um mercado em que fenômenos como Harry Potter saem com tiragem inicial de 350 mil exemplares. Potter precisou de cinco volumes para bater a casa dos 2 milhões de livros vendidos.
O grande impulso para o mercado de livros didáticos vem do governo federal. O Ministério da Educação (MEC) destinou R$ 746 milhões à compra de livros didáticos para o próximo ano letivo nas redes federal, estadual e municipal. O programa brasileiro é o terceiro maior do mundo – só fica atrás dos programas da China e dos Estados Unidos, segundo estudo do economista Fábio Sá Earp, coordenador do Laboratório de Economia do Livro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Para as editoras, é um mercado de mais de 37,6 milhões de alunos da rede pública. Boa parte dos livros com viés ideológico de esquerda passa pela análise do governo federal. Em cada disciplina, os livros são analisados por uma banca de especialistas de uma universidade pública. Dos 587 inscritos no ano passado, 182 foram excluídos. As escolas privadas não são obrigadas a seguir a lista dos livros aprovados pelo MEC. Mas geralmente a usam como referência.
Quem escolhe os livros didáticos | |
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Como o material é avaliado nas redes pública e privada | |
O autor escreve o livro didático. A cada três anos, as editoras encaminham suas coleções para avaliação do Ministério da Educação. No ano passado, 13editoras inscreveram 587 coleções | |
NAS ESCOLAS PÚBLICAS | |
1 – O MEC envia esses livros para universidades públicas. Cada disciplina vai para uma universidade, que monta uma banca de professores da área para avaliar o conteúdo | |
2 – As universidades têm seis meses para elaborar um parecer justificando quais livros serão aprovados e excluídos. Além de um documento com recomendações e ressalvas para auxiliar o professor na escolha dos livros aprovados | |
3 – Entre março e abril, o MEC divulga a lista dos aprovados. E envia a justificativa de exclusão dos não aprovados para as editoras | |
4 – A lista fica na internet e as escolas públicas escolhem, com os professores, os livros que vão usar | |
5 – O MEC compra os livros e, no início do ano seguinte, eles estão nas mãos dos alunos | |
NAS ESCOLAS PARTICULARES | |
1 – Vendedores das editoras mostram os livros nas escolas particulares | |
2 – A maioria das escolas usa como referência a lista de aprovados pelo MEC, por opção própria | |
APOSTILAS | |
Algumas escolas do país usam sistemas de apostilas feitas por grandes empresas de educação como Objetivo, Anglo, Pitágoras, UNO e Positivo. O material feito por essas editoras nem passa pelo MEC |
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Fontes: Ministério da Educação, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e Associação Brasileira de Editores de Livros |