Reportagem de capa da revista Época, publicada em 22 de outubro de 2007.
Boa parte dos livros didáticos apresenta distorções ideológicas. Por que elas existem e como comprometem a educação.
ALEXANDRE MANSUR, LUCIANA VICÁRIA E RENATA LEAL
As bancas das universidades que analisam os livros para o MEC costumam rejeitar títulos por má qualidade do conteúdo. São freqüentes os casos de livros recusados por informações incorretas, uso de linguagem inapropriada ou mesmo expressões racistas ou preconceituosas. Um dos critérios para a exclusão de livros é s a doutrinação política. Mas a banca deixa passar títulos que condenam o capitalismo e enaltecem o socialismo. Apesar da polêmica, o ministro da Educação, Fernando Haddad, diz que não vai reformular o sistema de avaliação por bancas, iniciado no governo FHC. “O Ministério da Educação não pode, sob pena de cometer gravíssimo erro, adotar a postura de censor. Em educação, a avaliação que dá certo é a avaliação feita por pares. Ela pode ter imperfeições, mas é melhor que qualquer outra”, disse Haddad.
Na avaliação pelos pares, esse viés que condena o capitalismo não choca boa parte dos acadêmicos. “O professor é de esquerda porque não acredita que haja uma solução para o problema da desigualdade que emane da direita”, diz o filósofo Renato Janine Ribeiro, diretor de avaliação da Capes, fundação do MEC que investe na pós-graduação. “Afinal, a direita governou o país quase o tempo todo. Ela gerou este país.” O próprio Janine Ribeiro apresenta sua visão do liberalismo econômico. “Para a riqueza das elites aumentar, é preciso mexer no bolo. Se alguns passam a ganhar mais, é provável que isso diminua o que vai para os que já ganham menos”, diz. Essa visão se baseia na concepção de que a riqueza é finita. Mas a corrente de pensamento econômico predominante é de que é possível criar valor – quando um país prospera, sua economia cresce, o que pode gerar riqueza para todos os estratos sociais.
Por que o ensino de História ganhou esse tom anticapitalista no Brasil? Segundo alguns economistas e educadores, isso é resultado de uma mudança no perfil dos professores ocorrida na década de 70. Naquele momento, a expansão da educação básica aconteceu à custa da redução do salário dos professores. O poder de compra deles hoje é até 70% menor do que foi na década de 50, de acordo com o sindicato dos professores do Estado de São Paulo (Apeoesp). Samuel Pessoa, economista da Fundação Getúlio Vargas, diz que o professor reage por conviver, em sala de aula, com crianças miseráveis, vítimas de violência e sem perspectivas. “É razoável que os professores se revoltem contra esta situação. Daí a surgir um pensamento de esquerda, parece meio natural”, afirma.
Segundo Pessoa, no entanto, o discurso marxista chega distorcido e pouco aprofundado, de modo que o discurso se resume a uma crítica ao capitalismo perverso. “Para entender o mundo, os professores passam a adotar uma lógica conveniente, simplista e sedutora, em geral conspiratória da História”, afirma. “Imagine que fácil se toda a tragédia social do país pudesse ser explicada pela globalização. Se todas as mazelas de países subdesenvolvidos fossem fruto apenas de forças externas e nunca de opções erradas que se fez durante o desenvolvimento.”
A visão maniqueísta da História pode ser encontrada já no curso de Pedagogia. Para mostrar isso, Bráulio Porto de Matos, da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, compara os manuais de didática mais usados pelos professores na década de 60 com o livro mais popular de hoje. O manual de Amaral Fontoura, usado até os anos 70, era principalmente técnico: fazia críticas ao processo de ensino. A obra mais atual, de Carlos Libâneo, no entanto, já em suas primeiras páginas fala sobre a perversidade do capitalismo: “As relações sociais do capitalismo são, assim, fortemente marcadas pela divisão da sociedade em classes, onde capitalistas e trabalhadores ocupam lugares opostos e antagônicos no processo de produção. A classe proprietária dos meios de produção retira seus lucros da exploração do trabalho da classe trabalhadora”.
De certa forma, a esquerdização dos professores no Brasil foi um reflexo do período de ditadura militar no país, nos anos 70. “Os professores empreenderam uma grande luta de retorno à democracia”, diz Célio Cunha, assessor de educação da Unesco no Brasil. “Estamos em uma fase de transição. Naturalmente estes livros refletem a realidade recente do país”, diz. Para ele é importante manter o direito de livre escolha do professor. “É a continuidade desse processo que nos colocará, daqui a alguns anos, em um ponto de equilíbrio.” Mas a transição talvez esteja demorando demais em um país que abandonou a ditadura há 20 anos. E ela não justifica o maniqueísmo assumido pelos livros.
A qualidade dos livros didáticos e a preocupação com os pontos de vista que eles veiculam não são uma questão importante somente no Brasil. “Os livros de História de qualquer sociedade não têm, necessariamente, um compromisso com a verdade”, afirma Bárbara Freitag, pedagoga da Universidade de Brasília. “Diariamente aparecem denúncias e descobertas que impõem a revisão do que se escreveu e permitem uma aproximação à verdade.” Nos Estados Unidos, existem pelo menos três organizações que se dedicam a estudar e, eventualmente, denunciar os conteúdos ensinados nas escolas e nas faculdades americanas. Elas dizem querer garantir a liberdade de pensamento e evitar a doutrinação, por parte dos professores, de qualquer crença, ideologia política ou convicção.
Recentemente, na Inglaterra, alguns pais se mostraram preocupados com a educação de seus filhos. De acordo com eles, o papel histórico do país como grande colonizador da Índia e de países africanos e sua participação nas duas guerras mundiais estariam sendo suavizados. A explicação para o abrandamento da História estaria no fato de que muitos indianos e africanos oriundos de ex-colônias britânicas estudam nas escolas inglesas. Rever a História e consertar no papel os possíveis excessos cometidos pela Inglaterra poderia evitar uma animosidade entre os alunos, impedir a exacerbação do nacionalismo nos imigrantes e da xenofobia nas demais crianças.
Mas talvez o maior exemplo de vigilância em relação aos livros didáticos seja dos alemães. “O governo é muito rigoroso com os livros com os quais as crianças vão estudar e com os professores que darão aulas”, diz Henning Suhr, assessor político da Fundação Konrad Adenauer. “Se algum professor disser que o nazismo não foi tão ruim, é imediatamente exonerado.” Demonstrações de nacionalismo, como o ato de cantar o hino nacional nas escolas, são vetadas.
Gabriel e a mãe, Mayra, com o volume de História da escola. “Neste livro, as pessoas já vêm julgadas e condenadas”, diz ela
Há quem diga que a ideologia nos livros didáticos não é um problema. “O viés esquerdista dos livros importa pouco”, afirma o sociólogo Alberto Carlos Almeida, diretor de planejamento da empresa de pesquisa Ipsos e autor do livro A Cabeça do Brasileiro. “Porque, à medida que a pessoa estuda, sua cabeça muda. Em geral, quem estuda mais tem uma visão menos estatizante.” Outro argumento de pensadores que minimizam o problema é que as fontes de informação no mundo atual são múltiplas e, por isso, contrabalançam qualquer viés na escola.
Mas, para milhões de crianças e jovens, isso não é verdade. “O material didático tem uma importância grande na formação do aluno pelo mero fato de ele ser, muitas vezes, o único livro com o qual a criança entrará em contato”, afirma a pedagoga Bárbara Freitag, da UnB. O conhecimento registrado no livro escolar também tem status maior que o da televisão, da internet ou mesmo da conversa com os pais. E, quanto mais nova é a criança, menos capacidade ela tem de questionar o que é mostrado no livro. “O didático representa para a criança a fonte do conhecimento valorizado pela sociedade”, afirma Ângela Soligo, coordenadora de pedagogia da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Por isso, ela tende a acreditar piamente em tudo o que está ali. Aquele conteúdo é visto como absolutamente verdadeiro.” Alguns bons professores levam para a sala recortes de revistas e s jornais, filmes ou outros livros de referência. “Mas algumas vezes o professor usa o livro como bengala”, diz Bárbara.
Embora a supremacia do livro seja incontestável, a internet já começa a proporcionar conteúdos capazes de rivalizar com esse conhecimento. Sites como a Wikipédia apresentam informações cuja veracidade é equivalente à dos livros didáticos. O problema é que essa ainda é uma fonte de pesquisa restrita. “Poucos professores mandam seus alunos pesquisar na internet. E o número de alunos que efetivamente pesquisam é menor ainda”, afirma Vani Kenski, da USP, especialista em tecnologia da educação.
O dano que livros didáticos ruins podem causar ao país vai além da questão política. “Eles ensinam para crianças e jovens fatos que não são verdadeiros, distorcendo a finalidade da educação”, diz o cientista político Bolívar Lamounier. É nessa fase do ensino fundamental e do ensino médio que os jovens se interessam por questões políticas. “Se receberem uma informação distorcida, criarão uma visão de mundo também distorcida.”
Segundo Bráulio Porto de Matos, da UnB, essa visão gera nas pessoas um sentimento de culpa indevida diante das riquezas advindas do próprio trabalho. “O sujeito vê que tem três carros na garagem e acha que tem de votar na esquerda porque aquilo é injusto”, diz. Para Matos, mais grave é o efeito na vida prática. “Quem analisa o mundo segundo uma ótica de conflito de classes tende a acreditar menos na iniciativa individual. No discurso da escola, mérito é um conceito burguês. E isso é visto como negativo.” Segundo Matos, essa educação desestimula as pessoas a empreender e a buscar o lucro como prêmio pelos esforços. “Esses livros não vão fazer uma revolução socialista no país, mas o Brasil fica mais pobre de perspectivas”, diz.
A presença de distorções em livros que, muitas vezes, passam pelo próprio crivo do MEC é um problema complexo. Mas pode ser resolvido. Lamounier aponta alguns caminhos. “Um deles seria criar comissões de análise mais pluralistas, com membros de diversas filosofias”, diz. “Outra estratégia seria convidar, para escrever os livros, pessoas com capacidade de expor os fatos de forma mais objetiva.” Para Marco Antonio Villa, historiador da Universidade Federal de São Carlos, o ideal seria haver uma profunda revisão dos livros. “A universidade precisa estar ligada a esse processo”, diz. “Livros didáticos não podem ser obras individuais, precisam ser coletivas.”
http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI12698-15223-2,00-O+QUE+ESTAO+ENSINANDO+AS+NOSSAS+CRIANCAS.html