Por Miguel Nagib
Um dos episódios mais comentados da semana foi, certamente, o que está registrado no vídeo abaixo:
Trata-se da invasão de uma sala de aula da Faculdade de Direito da USP, ocorrida no momento em que o professor de Direito Administrativo Eduardo Lobo Botelho Gualazzi lia para seus alunos um artigo no qual expressa suas convicções políticas e ideológicas e defende a revolução/golpe/contragolpe de 1964 (uma cópia do artigo encontra-se neste link).
Supondo que o episódio tenha acontecido durante uma aula da disciplina ministrada pelo professor — que é obrigatória –, nossas considerações são as seguintes:
1. A invasão promovida pelos estudantes é coisa típica de extremistas ideológicos. Ainda não dá para comparar com a violência dos guardas vermelhos durante a Revolução Cultural, na China, mas é só uma questão de tempo para esses fascistas de esquerda chegarem lá.
2. Quanto ao professor, entendemos que ele não tinha o direito de usar uma aula da sua disciplina para obrigar os alunos a ouvi-lo dissertar sobre assuntos que nada têm a ver com Direito Administrativo.
3. Com efeito, a única forma de conciliar o caráter obrigatório de uma disciplina com a liberdade de consciência (ou liberdade de aprender) dos estudantes é limitar a liberdade de cátedra (ou liberdade de ensinar) do professor ao conteúdo específico dessa disciplina, que é a área, afinal, na qual se supõe que ele tenha algo a ensinar aos alunos.
4. Se o estudante não é livre para levantar e sair da sala (sem que esse ato possa lhe acarretar algum tipo de prejuízo), o professor não pode ser livre para ir além do conteúdo específico de sua disciplina para dizer, ex cathedra, o que bem entenda.
5. Ainda que se possa tolerar, aqui e ali, algum comentário de cunho político ou ideológico, isso não pode ser a regra.
6. Não se pode admitir que um professor se aproveite da autoridade que lhe é conferida pela cátedra e da audiência, literalmente, cativa dos alunos para promover suas próprias concepções políticas e ideológicas.
7. Portanto, se o professor desejava expor suas ideias sobre assuntos que não fazem parte da sua disciplina — política, economia, história, etc. –, deveria ter dito aos estudantes: “No dia tal, a tal hora, no auditório tal, farei uma palestra sobre tais assuntos. Quem quiser apareça.”
8. O melhor antídoto contra a instrumentalização do ensino para fins políticos e ideológicos ainda é a conhecida, mas negligenciada, lição de Max Weber:
O verdadeiro professor terá escrúpulos de impor, do alto de sua cátedra, uma tomada de posição qualquer, tanto abertamente quanto por sugestão – já que a maneira mais desleal é evidentemente a que consiste em “deixar os fatos falarem”.
Essencialmente, por que razões devemos abster-nos? Deduzo que determinado número de meus respeitáveis colegas opinará no sentido de que é, geralmente, impossível pôr em pratica esses escrúpulos pessoais e que, se [fosse] possível, seria fora de propósito adotar precauções semelhantes. [Bem], não se pode demonstrar [cientificamente] a ninguém aquilo em que consiste o dever de um professor universitário. Nada mais se poderá exigir dele do que probidade intelectual ou, em outras palavras, a obrigação de reconhecer que existem dois tipos de problemas heterogêneos: de um lado, o estabelecimento de fatos, a determinação das realidades matemáticas e lógicas ou a identificação das estruturas intrínsecas dos valores culturais; e, de outro, a resposta a questões referentes ao valor da cultura e de seus conteúdos particulares ou a questões relativas à maneira como se deveria agir na cidade e em meio a agrupamentos políticos.
Agora, se me fosse perguntado por que esta última serie de questões deve ser excluída de uma sala de aula, eu responderia que o profeta e o demagogo estão deslocados em uma cátedra universitária. Tanto ao profeta quanto ao demagogo se deve dizer: “Vá às ruas e fale em público”, quer dizer, que ele fale em lugar onde possa ser criticado. Em uma sala de aula enfrenta-se o auditório de maneira totalmente diversa: a palavra é do professor, e os estudantes estão condenados ao silencio. Impõem as circunstâncias que os alunos sejam obrigados a seguir os cursos de um professor, tendo em vista a futura carreira e que ninguém dos presentes a uma sala de aula possa criticar o mestre. É imperdoável a um professor valer-se dessa situação para buscar incutir em seus discípulos as suas próprias concepções políticas, em vez de lhes ser útil, como é de seu dever, através da transmissão de conhecimento e de experiência cientifica.
Positivamente, pode ocorrer que este ou aquele professor apenas de forma imperfeita consiga fazer calar as suas preferências. Nesse caso, estará sujeito à mais severa das críticas no intimo de sua própria consciência. Todavia, uma falha dessas não prova nada em absoluto, pois que existem outros tipos de falha como, por exemplo, os erros materiais, e também [estes] nada provam contra a obrigação da busca da verdade. [Com outras palavras: a dificuldade concreta em fazer calar as próprias simpatias e preferências, não induz à conclusão de que o professor esteja desobrigado de buscar a verdade. Assim como a dificuldade em praticar a caridade, a justiça, a honestidade, etc. não implica a abolição desses deveres.] Se não bastasse, é exatamente em nome do interesse da ciência que eu condeno essa forma de proceder. Recorrendo às obras de nossos historiadores, tenho condição de lhes fornecer prova de que, sempre que um homem de ciência permite que se manifestem seus próprios juízos de valor, ele perde a compreensão integral dos fatos. Contudo, essa demonstração se estenderia para além dos limites do tema que nos ocupa esta noite e exigiria digressões demasiado longas. (…)
Seria desconfortante para todo professor titular de uma cátedra universitária abrigar o sentimento de estar colocado diante da impudente exigência de provar que é um líder. Mais desconfortante ainda seria pressupor-se que todo professor de universidade poderia ter a possibilidade de desempenhar esse papel na sala de aula. Efetivamente, os indivíduos que a si mesmos se julgam líderes são, as mais das vezes, os menos qualificados para tal função. De qualquer forma, a sala de aula não será jamais o local em que o professor possa fazer prova de uma aptidão dessa. O professor que sente a vocação de conselheiro da juventude e que goza da confiança dos moços deve desempenhar esse papel no contato pessoal de homem para homem. Caso ele se julgue chamado a participar das lutas entre concepções de mundo e entre opiniões de partidos, deve fazê-lo fora da sala de aula, deve fazê-lo em lugar público, isto é, através da imprensa, em reuniões, em associações, onde achar melhor. Sem dúvida, é muito cômodo exibir coragem num local em que os assistentes e, provavelmente, os oponentes, estão supliciados ao silêncio.”
9. Em suma: erraram os invasores; errou o professor.
P.S. – A propósito desse texto, recebi do Prof. Diniz Filho, do depto. de Geografia da UFPR, a seguinte mensagem, que subscrevo integralmente:
Uma coisa que me ocorreu ao ler o texto é que, se os alunos que invadiram a aula tivessem uma visão democrática do que deve ser um ambiente universitário, poderiam ter protestado contra a atitude do professor distribuindo cópias do cartaz com os Deveres do Professor para os alunos, antes de a aula começar.
Por que não fizeram isso? Porque não se importam que haja doutrinação ideológica em sala de aula: reagem contra essa prática se for doutrinação “de direita”, mas se calam e aplaudem quando há doutrinação de esquerda. E a forma como combatem a doutrinação de quem pensa diferente é, como você bem qualificou, fascista: impedem que a aula aconteça, simplesmente.
Esse caso mostra que a campanha pelo cartaz anti-doutrinação é a única forma democrática de lutar contra a ideologização das salas de aula. Quem reage contra o cartaz quer doutrinação mesmo.