Reportagem publicada na revista “Isto É”, edição de 17 de junho de 1998.
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Aula de espanhol na escola 25 de Maio: para entender as lições de Che
“Gracias a la vida, que me ha dado el sonido y el abecedario, con el, las palabras que pienso y declaro: madre, amigo hermano.” Embalados pela música engajada da cantora argentina Mercedes Sosa, um grupo de crianças aprende a traduzir do espanhol frases aguerridas de ícones da revolução cubana, como Ernesto Che Guevara e José Martí, numa cena que parece saída da década de 60, quando o modelo dos movimentos populares na América Latina era referência para a prática política da esquerda. Mas não é só. As aulas da língua falada na pátria de Fidel Castro vão além de simples traduções. Os alunos também aprendem a discutir conceitos complicados como luta de classes, reforma agrária e exclusão social. “Quero mudar o mundo, para que todos os pobres tenham direito ao seu pedaço de terra e ninguém passe fome enquanto outros jogam comida fora”, prega Maicon Bento, 12 anos, um dos 84 alunos da escola agrícola de Primeiro Grau 25 de Maio, próxima aos assentamentos rurais de Faxinal dos Domingues e União da Vitória, no interior catarinense.
A cerca de 20 quilômetros da pequena Fraiburgo, uma pacata cidade situada no coração do Estado e apelidada de capital brasileira da maçã, uma experiência de ensino bem diferente acontece sem fazer muito barulho. Percorrida essa distância por uma sinuosa estrada de terra que corta a fazenda desapropriada do Faxinal, Maicon e seus colegas criticam a política do governo Fernando Henrique Cardoso em sala de aula e fazem trabalhos de colagem e desenho onde mostram o País que dizem desejar. Nesta utopia construída com retalhos de outros países, não há lugar para problemas sociais como o desemprego. A apaixonada defesa da reforma agrária e da justiça social, temas distantes da realidade da maioria dos estudantes brasileiros, é um consenso entre estas crianças, formadas pela pedagogia linha-dura do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), desenvolvida pelo seu Setor de Educação, que hoje faz a cabeça de um exército de 40 mil crianças em cerca de mil escolas de primeiro grau em acampamentos e assentamentos.
O projeto de educação do MST nasceu há dez anos e se amplia a cada dia. Suas publicações dizem que é calcado em ideais socialistas e coletivos. A proposta mistura um pouco de tudo. A pedagogia de seus professores vai das idéias do educador pernambucano Paulo Freire às de Che Guevara e inclui ainda clássicos da filosofia comunista como Karl Marx, Friedrich Engels, Mao Tsé-tung e Antônio Gramsci. Tudo isso auxiliado pelo conteúdo pedagógico tradicional das cartilhas oficiais.
Enquanto a chuva fina cai numa fria manhã de maio na região de Fraiburgo, diante de um quadro-negro alunos e professores cantam músicas que evocam ideais revolucionários. As letras defendem a famigerada união operária e camponesa e de quebra ainda criticam a burguesia e o latifúndio. “A classe roceira e a operária ansiosas esperam a reforma agrária… a grande esperança que o povo conduz, pedir a Jesus pela oração para guiar o pobre por onde ele trilha e a cada família para não faltar o pão e que ele não deixe o capitalismo levar ao abismo a nossa nação… companheirada, pra burguesia não tire o chapéu, mesmo que ela nos prometa o céu, nossa luta não pode parar (sic).” O ritmo é marcado pelos braços erguidos e os punhos fechados, em meio à sala cujas paredes caiadas de branco são cobertas por singelos cartazes feitos pelas crianças. “A maioria dos brasileiros não tem nada e passa fome, enquanto uma minoria possui quase toda a riqueza que é produzida pelos trabalhadores”, lê-se na cartolina amarela escrita em caligrafia imprecisa com pincel atômico vermelho
Em São Mateus (ES), Pedagogia do Oprimido: Paulo Freire ao ar livre
“Só penso em estudar. Não quero ser explorado como meu pai, que dá um duro danado na roça só para poder comer”, diz Vilmar Rodrigues da Rosa, um menino franzino de 16 anos que mora a quatro horas de viagem da família. Seus pais foram assentados perto da cidade de Caçador, no noroeste do Estado, mas membros do MST os convenceram a deixá-lo frequentar a escola, onde seria preparado para o ofício com aulas práticas de agricultura e zootecnia. Mas Vilmar quer mesmo é ensinar matemática quando crescer. “Visito meus pais umas três vezes por ano para matar a saudade. De vez em quando meu pai tenta me convencer a ficar para ajudar meus sete irmãos na gleba, mas aí eu falo para ele que meu sonho é estudar para ser professor.”
Em um artigo que leva o título de “A educação como prática libertadora”, sobre o Primeiro Encontro Nacional dos Educadores da Reforma Agrária realizado pelo MST em parceria com a Universidade de Brasília (UnB), Unicef e Unesco, do segundo semestre do ano passado, os militantes discutiram novas formas de colocar sua proposta de educação a serviço da “construção de um novo projeto para o Brasil”. No encontro, o líder maior do movimento, João Pedro Stédile, disse que a visão de que a reforma agrária se resume à distribuição de terras já foi coberta pelo pó da história. “Numa sociedade moderna, de nada adianta a terra se os filhos dos trabalhadores rurais não tiverem acesso à escola e ao conhecimento”, disse, lembrando o que foi escrito por Gramsci, quando pregou que o caminho do projeto de hegemonia das classes populares passava necessariamente pela educação. Mas o movimento não quer a democratização de um ensino qualquer.
“Não fazemos lavagem cerebral. Estamos descontaminando estas pessoas do bombardeio feito pela mídia”
Vander Ruschel, professor
Nas escolas controladas pelo MST, além do conteúdo normal das disciplinas curriculares são reservados pelo menos 45 minutos diários para que as crianças tenham discussões sobre o seu cotidiano. Como reza a cartilha do método Paulo Freire, as lições de história começam a partir da realidade do aluno. No caso deles, elas têm início na conquista dos palmos de terra que os meninos ocuparam juntamente com seus pais e irmãos, muitas vezes numa disputa que envolveu enfrentamento de proprietários de terras locais. “Os pistoleiros chegavam a cavalo e acabavam com toda a nossa plantação. Mas o pior mesmo era quando eles aproveitavam quando a gente estava fora e tocavam fogo na nossa casa”, recorda com nervosismo Leandro do Nascimento César, 13 anos, aluno da escola primária do assentamento de Corte Grande, a uma hora da cidade baiana de Itamaraju, no sul da Bahia.
Os professores preparados e reciclados em escolas do MST defendem o conteúdo adotado. “Alguns nos acusam de estar fazendo lavagem cerebral. Eu discordo. Estamos na verdade descontaminando estas pessoas do bombardeio feito pela mídia”, afirma Vander Ruschel, professor da escola 25 de Maio, reagindo às críticas dos que acusam o MST de estar na verdade doutrinando uma massa de jovens e crianças nas escolas rurais para futuramente engrossarem as fileiras do movimento. Formado em Ciências Sociais, ele diz ter feito uma opção política ao deixar Florianópolis com a mulher Neide, que também ajuda na preparação das aulas, para assumir o posto de professor na escola. Filho de um pequeno agricultor que deixou a roça em direção à cidade em busca de emprego, Vander se lembra ainda hoje das duras viagens que fazia quando menino em cima de uma carroça carregada de milho, na volta da colheita, quando o pai trabalhava como meeiro nas terras de um pequeno proprietário.
Maicon, 12 anos: “Quero mudar o mundo para que os pobres tenham terra”
Ele argumenta que a proposta cria condições para que os alunos valorizem a vida no campo e tenham instrumentos para buscar uma sociedade mais “evoluída”. “O ensino das escolas da cidade não ajuda estas pessoas porque desvaloriza seu cotidiano e as estimula a buscar oportunidades de vida no meio urbano, onde acabam sem casa, trabalho ou dignidade.” O que fica evidente é que muitas vezes o MST faz o trabalho que seria de responsabilidade do Estado. “Não sou analfabeto por causa do movimento”, diz Celso Curioni, 19 anos, hoje professor de Técnicas Agrícolas na escola 25 de Maio. Mas são duas as faces da moeda, já que o aprendizado embute também a necessidade de sobrevivência do MST. Envolvidas pelas lições que aprendem em sala de aula, muitas crianças desejam continuar, quando adultas, a luta na qual cresceram e foram educadas. “Quero organizar as frentes de massa”, garante o pequeno Neilor Baldicera, 12 anos, referindo-se com naturalidade à arregimentação de trabalhadores sem terra que normalmente precede as ocupações.
Neilor é apenas um dos exemplos entre centenas. “O projeto também estimula a possibilidade de contribuir no futuro com o movimento. Não faria sentido ser de outro jeito. Os pais destas crianças sofreram muito tempo embaixo de uma lona preta, em acampamentos improvisados. Houve violência e mortes. É preciso que haja quem continue a luta mais adiante, evitando que tudo isso seja jogado fora e as ocupações tenham de ser feitas novamente”, reconhece a professora Solange Chagas Santos. Uma das responsáveis pela implementação da proposta nas escolas de assentamentos da Bahia, Solange é filha de agricultores hoje assentados em Corte Grande, nos arredores de Itamaraju.
A revolução promovida pelo MST nas salas de aula divide opiniões e desperta curiosidade até mesmo dentro do governo. “Já ouvimos falar muito desse trabalho e gostaríamos imensamente de ver de perto o que está sendo feito nessas escolas”, diz o sociólogo Juarez Brandão Lopes, responsável pelo Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento (Nead) do Ministério comandado por Raul Jungmann. Ex-reitor da UnB, o professor de Psicologia do Aprendizado Cláudio Todorov, tem mais informações sobre o projeto. Assessor de Jungmann, ele coordena o programa do Ministério voltado para a alfabetização de jovens e adultos de assentamentos, e não esconde sua aprovação. “O movimento está fazendo pelo ensino no campo o que nunca se fez em 500 anos de história.” De acordo com ele, o limiar entre consciência crítica e doutrinação de fato é tênue. Mas explica que, conceitualmente, a prática da doutrinação mais se assemelha às empregadas por religiões, onde são desenvolvidas atividades que mexem com o lado emocional dos fiéis para transmitir valores e preconceitos sem abrir espaço para o questionamento ou a crítica. “O socialismo é o horizonte com que eles trabalham e não vejo o conteúdo do projeto se colocar contra o estado de direito. Propor utopias diferentes faz parte do jogo democrático”, considera o professor, ao ressaltar que o Ministério não interfere na pedagogia das escolas de assentamentos que, por abrangerem o ensino fundamental estão sob a égide de Estados e municípios.
Raul Jungmann torce o nariz para a linha do projeto. “A fixação de modelos como estes no fundo está voltada para a formação de quadros para um projeto político, para a continuidade do movimento, e não para a formação de cidadãos.” O ministro concorda com a utilização da teoria de Paulo Freire e diz apoiar iniciativas de educação nos assentamentos, mas cita uma frase do educador ao considerar que o método não pode servir de escudo para a transmissão de valores políticos, espelhando-se em modelos anacrônicos de doutrinação. “A cabeça do povo não é lata. Este é um modelo fracassado, como o usado na antiga União Soviética e em Cuba, país que leva zero em matéria de democracia. Falo isto como socialista que sempre fui e continuarei sendo.”
Referência acadêmica do setor de Pedagogia, o professor da Universidade de São Paulo, Moacir Gadotti, 35 livros publicados, garante que não há modelo de educação que seja neutro. “Isto não existe. Educação implica valores de vida, sociais e políticos. A postura de um professor em sala de aula já implica a defesa de valores específicos”, diz, ao fazer restrição, no entanto, a projetos de educação partidários. Para o professor, que é presidente do Instituto Paulo Freire, o ensino formal é hoje impregnado de valores culturais europeus, americanos, brancos, masculinos e cristãos. “É preciso ir além do ensino formal, que hoje é chato, burocrático e não atende às demandas das pessoas e sim às do Estado.” E completa. “O que conheço da proposta do MST é sua preocupação com a organização da consciência crítica, muita clareza e consistência teórica que não se vê em outros segmentos, inclusive no Estado.” A inserção de conteúdo ideológico no ensino é um modelo, inclusive que já foi usado por escolas públicas nos Estados Unidos, onde a disciplina Americanismo versus Comunismo era um dos cursos obrigatórios no currículo de segundo grau. Neste caso, a diferença é que o conteúdo da disciplina procura reforçar o modelo de sociedade vigente.
As idéias do MST também ganham força fora das glebas dos assentamentos. Perto do assentamento de Pip Nuck, situado a meia hora de Nova Venécia, no sul do Espírito Santo, filhos de pequenos proprietários aprendem pela cartilha engajada do movimento. “Já me perguntaram por que é que estudo aqui, se sou a favor da reforma agrária. Respondo sempre que se não apoiasse não estaria aqui”, diz José Gleidson Camata, 13 anos, aluno da Escola Padre Josimo. A instituição leva o nome do religioso que foi assassinado em 1986 por apoiar as ações de trabalhadores sem-terra no Maranhão. Às voltas com a enxada na horta que as professoras ensinam a cultivar em meio à falta de água que complica a vida de quem vive no norte do Estado, Cleyton cogita da possibilidade de ser professor ali mesmo quando se tornar um adulto.
Por estar no ponto mais alto de um terreno desigual, a pequena igreja branca é a primeira visão que se tem da escola do assentamento 27 de Outubro, criado a partir da primeira ocupação organizada pelo MST no Espírito Santo, a 25 quilômetros de São Mateus. Foi também a primeira sala de aula, antes do mutirão promovido por pais de alunos para levantar as duas casinhas que abrigam as novas salas. Como José Gleidson, Regiane Ubaldo da Silva, 13 anos, é filha de pequenos proprietários e ao contrário dos colegas assentados ouviu falar de reforma agrária pela primeira vez em sala de aula. “A gente percebe que é justo quando vê o sofrimento das pessoas, que passam fome sem um pedaço de terra.”