Por Sidney Rogério França *
Assistindo ao segundo vídeo de uma série de 20 videolaulas de Literatura, vídeos estes disponibilizados no endereço eletrônico: https://www.youtube.com/user/tjpasd/videos, constatei que o professor, identificado na legenda como Marco Antônio, exemplificava o conteúdo trabalhado, utilizando fragmentos textuais literários que reforçavam, da forma que foram apresentados, a ideia do capitalismo como fonte única dos males sociais. Não recusamos reconhecer, o que seria de nossa parte uma clara demonstração de ingenuidade, que este modelo econômico, como qualquer outro, seja imperfeito, e que alguns problemas sociais evocados pelo professor sejam reais. Chamamos, porém, a atenção para o uso enfático que, às vezes tacitamente, reforça, pela generalização, um preconceito sistematicamente introjetado na cabeça do cidadão comum. Desta forma, os que se prestam, ainda que “inconscientemente” à prática da doutrinação, contam com uma predisposição no senso comum para recebê-la.
Antes que me carimbem a pecha de reacionário psicótico disposto a enxergar doutrinação em tudo, ressalto que os exemplos aqui analisados são, conforme o leitor constatará, similares a muitos que você, enquanto estudante leigo de Literatura, depara o já deparou com recorrência em sala de aula. O primeiro texto utilizado pelo professor foi A Rosa de Hiroshima, de Vinícius de Moraes; já que a arte é uma transfiguração da realidade, no texto, a realidade transfigurada é a covardia protagonizada pelos NORTEAMERICANOS (os paladinos do capitalismo). Posteriormente, utiliza partes do poema Construção, de Chico Buarque de Holanda e do texto Cidadão, de Lúcio Barboza (“está vendo aquele edifício, moço, ajudei…”).
Não questionamos aqui o uso didático dos textos para fins de identificação de elementos técnicos na composição do texto literário; os textos escolhidos realmente servem a este propósito. O que colocamos, criticamente, em pauta é a mensagem, às vezes ostensiva, que perpassa cada texto: que reforça proposições marxistas como: demonização dos EUA, do capitalismo; ou, no caso dos dois últimos textos, no parágrafo anterior, a fomentação da luta de classes, o que é feito indiretamente, realçando a ideia da opressão social, supostamente engendrada pela burguesia, como se a causa desse estado de subserviência, ironicamente menor nos países capitalistas, não fossem, na maioria dos casos, mais uma vez ironicamente, políticas socialistas.
O último fragmento literário escolhido pelo professor para retratar a realidade… adivinhem que realidade retrata? A realidade social. Foi parte do poema “A morte do leiteiro”, de Carlos Drummond de Andrade, em que mais uma vez a figura proletária é evocada. Transcrevo abaixo a parte do texto utilizada, para, a seguir, transcrever parte da interpretação que o professor faz do poema:
A Morte do Leiteiro
Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade (…)
Seguem os comentários do professor (a título de curiosidade, o professor usa um chapéu semelhante aos utilizados pelos proletários à época da Revolução Russa):
Triste, não é? Mas é a realidade que nos cerca (…). Nós podemos entender que o poeta, por meio de uma mensagem leve no texto, faz uma ironia, uma crítica, a quê? Ao momento social pelo qual o Brasil está passando. O texto também é dos anos 40. O texto também foi lançado após a Segunda Guerra Mundial. E justamente após a Segunda Guerra Mundial, o Brasil começa a sofrer a influência maior dos Estados Unidos da América. É como se o poeta, de repente, mostrasse para você, leitor hoje do século XXI, que naquela época nós, os próprios habitantes daquela sociedade, estávamos entregando, de bandeja, o nosso país aos americanos (Marco Antônio).
Deixamos, por fim, algumas perguntas. A crítica ao capitalismo e a todos os elementos de alguma forma a ele relacionados é acompanhada, mesmo que subliminarmente, da sugestão de um modelo alternativo, presumivelmente melhor, obviamente. Por que há a denúncia de uma suposta interferência norte americana, mas não há qualquer alusão à clara e prejudicial interferência soviética no Caribe, na Indochina, na Coréia do Norte? Por que, nas aulas de literatura, os exemplos de transfiguração da realidade social não nos vêm de literatos como Aleksandr Solzhenistsyn? Já que a Literatura como forma de representação social se deixa instrumentalizar, positivamente, para a crítica social, por que o estudante brasileiro ignora as maiores tragédias sociais provocadas pela ingerência humana: O genocídio ucraniano, os expurgos stalinistas, a grande fome da China, a tragédia cambojana? Por que alguns compositores brasileiros ganham status de gênios literários, ao denunciarem o regime de exceção implantado pelos militares no Brasil, que, quantitativamente, levando-se em conta o número de vítimas produzidas, foi inexpressivo, quando comparado ao modelo “mais humano” dos regimes socialistas, o de Cuba, onde perdura um totalitarismo há mais de meio século? Este dizimou, até o momento, aproximadamente 115.000 vidas contra cerca de 300, segundo estimativa da própria esquerda brasileira, colocadas na conta dos militares brasileiros. Alguém poderia me convencer de que não estamos diante de um incontestável quadro de doutrinação ideológica?
* Licenciado em História pela FIC/Unis (Faculdades Integradas de Cataguases – Grupo Unis). E-mail: sidneyrf2002@yahoo.com.br