Combater a ideologização em sala de aula é censura?

Para responder a essa pergunta, a Folha de São Paulo convidou o advogado Miguel Nagib, coordenador do ESP, e o Prof. Lincoln Secco, professor de história na USP e autor do livro “História do PT”. Seguem os artigos, publicados na edição do dia 18.07.2015.

Combater a ideologização em sala de aula é censura? NÃO 

Censura é cerceamento à liberdade de expressão. Ocorre que não existe liberdade de expressão no exercício estrito da atividade docente. Se existisse, o professor não seria obrigado a transmitir aos alunos o conteúdo de sua disciplina: poderia usar suas aulas falando sobre futebol e novela.

Também não existe liberdade de expressão quando a pessoa se dirige a indivíduos que são obrigados a escutá-la, como os alunos numa sala de aula. Do contrário, a liberdade de consciência desses indivíduos –garantida pela Constituição– seria letra morta. O que a Carta Magna assegura ao professor é a liberdade de ensinar.

Essa liberdade, porém, não confere ao professor o direito de abusar do seu cargo e da audiência cativa dos alunos para promover suas convicções políticas e ideológicas.

Além de violar a liberdade de consciência dos alunos, essa prática ofende o princípio constitucional da neutralidade política e ideológica do Estado –que impede o uso da máquina pública em benefício desse ou daquele partido ou ideologia– e afronta a democracia, já que visa a desequilibrar o jogo político em favor de um dos competidores.

Ora, sendo a doutrinação uma prática ilícita, o Estado não só pode como tem o dever de combatê-la. O problema é que, na sala de aula, o único agente do Estado é justamente aquele que promove a ideologização: o professor militante. Qual é a solução?

É simples: basta informar o estudante sobre o direito que ele tem de não ser doutrinado por seus professores. Com esse propósito, o movimento Escola sem Partido elaborou um anteprojeto de lei que prevê a afixação, nas salas de aula, de um cartaz com os deveres do professor.

As obrigações são estas: não abusar da audiência cativa dos alunos, com o objetivo de cooptá-los para essa ou aquela corrente ideológica, política ou partidária.

Não favorecer nem prejudicar os alunos em razão das suas convicções políticas, ideológicas, religiosas ou morais.

Não fazer propaganda político-partidária em sala de aula.

Ao tratar de questões controvertidas, apresentar aos alunos, de forma justa, as principais teorias, versões e perspectivas concorrentes.

Respeitar o direito dos pais dos alunos sobre a educação moral dos seus filhos.

“Mas esses deveres já existem”, dirá o leitor. É claro que sim! O que se pretende é apenas levá-los ao conhecimento dos alunos. Ou será que eles não têm o direito de saber?

Já apresentado como projeto de lei no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas de São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás, Alagoas, Espirito Santo, Ceará, Rio Grande do Sul e Distrito Federal, e em diversos municípios, esse anteprojeto está despertando a fúria dos partidos que colhem os frutos da doutrinação e da propaganda política e ideológica nas escolas, e dos sindicatos de professores por eles controlados.

Acusam o anteprojeto de impedir o debate, reconhecendo, tacitamente, que sua noção de “debate” é incompatível com os deveres acima. Alegam que não existe neutralidade, como se isso eximisse o professor do dever profissional de buscá-la. Desmascaram-se no ato mesmo de atacar a proposta.

A ideologização em sala de aula é uma prática tão reprovável, de consequências tão danosas para a educação e para a democracia, que muitos se perguntam se não deveria ser definida como crime.
Expressando esse sentimento, o deputado federal Rogério Marinho (PSDB-RN) apresentou este ano projeto de lei que propõe a criminalização do assédio ideológico. Como se vê, chegou a hora de tratarmos deste assunto.

MIGUEL NAGIB, 54, advogado, é coordenador do movimento Escola sem Partido, iniciativa de estudantes e pais que visa combater a doutrinação política e ideológica em salas de aulas

Combater a ideologização em sala de aula é censura? SIM

Não bastasse a fúria legiferante do Congresso que destrói cláusulas pétreas da Constituição, procura constitucionalizar golpes de Estado, promover cultos religiosos em plenário e defender o “direito à homofobia”, ainda temos que discutir a censura à escola.

É disso que tratam os projetos de lei nº 867/2015 e nº 1.411/2015, de dois deputados do PSDB, ora em tramitação na Câmara Federal. Eles propõem a “escola sem partido” e criminalizam o que chamam de “assédio ideológico”. Naturalmente, os autores dos projetos não se consideram ideólogos.

Já existem vários projetos do mesmo tipo em Legislativos estaduais e municipais. Fazem parte da onda obscurantista que varre uma parte da sociedade brasileira. Para esta há o centro de uma grande conspiração intocado pela ação saneadora dos meios de comunicação.

É a escola! Basta ler a justificativa de um dos projetos e encontraremos a razão recôndita: prepara-se no Brasil uma doutrinação ideológica baseada no filósofo italiano Antonio Gramsci e nas teses do 5º Congresso do PT (sic)!

Como o processo educativo ainda é um encontro de pessoas, é claro que os professores não podem se despir de suas crenças quando ensinam, tampouco as crianças, que trazem para a sala de aula os preconceitos que absorvem em suas famílias ou meios de comunicação.

Assim, não se espera que um professor religioso de biologia finja não crer em Deus ao ensinar a evolução das espécies. Mas deve tratá-la pelo que é: uma teoria científica. Qualquer professor sabe disso. Igualmente, o educador deve corrigir manifestações racistas que, eventualmente, o aluno traga de casa.

O nosso problema não é aquilo em que movimentos, como o Escola sem Partido, acreditam. Eles criaram um novo conceito sociológico: o “aparelho ideológico de Estado petista”. Só que a escola perdeu centralidade no processo pedagógico.

A educação nunca foi um processo apenas escolar, mas professores mal pagos em escolas abandonadas e sob estafantes jornadas de trabalho que continuam fora do horário escolar não podem competir com a internet nem com a televisão.

O próprio PT jamais teve projeto pedagógico e, no poder, submeteu a educação ao superavit primário. A revolução educacional defendida por Florestan Fernandes e Paulo Freire nem sequer foi lembrada. Ainda assim, o Ministério da Educação assegurou princípios éticos, como a solidariedade e autonomia, e estéticos, como a valorização de diferentes culturas. Obviamente, a educação segue também princípios políticos, entre eles a defesa da cidadania e o respeito à democracia.

Contra quais desses parâmetros os projetos de lei se insurgem? Seriam contra a história da África, só porque foi inserida no currículo pelo governo Lula? Contra o direito a brincar que é um dos princípios definidos pelo Ministério da Educação para a escola infantil?

Afinal, talvez haja um conteúdo chinês no jogo da amarelinha ou a preparação para a clandestinidade no esconde-esconde!

Que o leitor entenda aqui a ironia como o último recurso diante da língua simplificada dos neofascistas. Apresentam-se como defensores da liberdade, assim como o golpe de Estado é sempre pela democracia.

E, quando você discorda, lê nos seus esconderijos virtuais termos como “idiotice”, “masturbação sociológica” e a suprema ofensa: “petista” (outrora seria “comunista”). Curiosamente, eles são os frutos da mesma escola que nos doutrina como esquerdistas incorrigíveis.

LINCOLN SECCO, 46, é professor livre-docente de história contemporânea na USP e autor de “História do PT” (Ateliê Editorial)

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