Professor titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo reconhece o uso do ENEM como filtro ideológico de acesso ao ensino superior.
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Por Nílson José Machado *
A prova tem falhas logísticas e há incerteza sobre os critérios de correção; as questões têm textos longos demais e apresentam filtros ideológicos
O governo federal acaba de receber cerca de 3,4 milhões de inscrições para as pouco mais de 100 mil vagas no ensino superior pelo Sisu (Sistema de Seleção Unificada). Foram 1,7 milhão de candidatos (os alunos podem se inscrever para mais de um curso). Em média, mais de 30 candidatos disputam cada vaga.
Trata-se do maior vestibular do país, e a sua forma de organização poderia sugerir um grande avanço ao poupar os alunos das gincanas dos múltiplos vestibulares. Mas tal processo seletivo constitui, de fato, um enorme monstrengo educacional, uma espécie de loteria.
O primeiro sintoma de anomalia é o fato de o Enem ser o instrumento de avaliação utilizado.
Mesmo quando realizado de modo absolutamente consistente, sem os desvios logísticos e conceituais que têm acompanhado o exame nas últimas realizações, o Enem não foi projetado para ser um processo seletivo. Ele não é adequado para classificações finas, como as que ocorrem nos vestibulares. A prova poderia até ser utilizada como um indicador, entre outros instrumentos, mas nunca como o elemento decisivo para a aprovação.
Os maiores desvios decorrem, no entanto, do modo atabalhoado como o Enem tem sido realizado.
Problemas logísticos como roubos de provas, quebras de sigilo, inadequações na pré-testagem e nas dimensões dos bancos de itens têm se sucedido, ano a ano, minando a integridade e a credibilidade da prova. Além disso, há questões estruturais referentes às provas.
Com a transformação de uma única prova de 63 questões em quatro provas, uma para cada área em que se organiza o ensino médio, com 45 questões cada uma, o teste ficou excessivamente longo para o conteúdo que examina.
Ocorreu então um desbalanceamento, com uma supervalorização da prova de redação. Tal problema tem sido amplificado pelo fato de as incertezas nos critérios de correção da prova terem sido levadas aos tribunais competentes e estarem, hoje, no centro das discussões.
Há outras questões conceituais que eivam o processo de elaboração do Enem: a premissa de que as questões das provas devem ser “contextualizadas” é uma delas.
Em muitos dos itens da prova, a palavra “contexto” é tratada como se significasse uma abreviatura de “com muito texto”. Os enunciados tornam-se desnecessariamente longos, levando alguns professores a dar um conselho excêntrico: sugerem que os alunos não leiam os enunciados logo de início, indo diretamente à pergunta feita. Eles garantem que, na maioria das vezes, a resposta correta pode ser indicada, sem perda de tempo.
Outro desvio conceitual mais sutil é a interpretação da contextualização como filtro ideológico primário. De modo defensivo, quase cínico, os alunos “aprendem” e divulgam regrinhas do “politicamente correto”, referentes, sobretudo, a questões ambientais ou aos direitos humanos, tais como definidos em catecismos partidários.
O mais grave dos desvios, no entanto, é a pretensão de utilização de uma sofisticada Teoria da Resposta ao Item (TRI) na correção das provas. As limitações na qualidade e na quantidade dos itens dos bancos de questões minam qualquer possibilidade de sucesso no recurso a tal parafernália matemática.
Objetivamente, o que se conseguiu foi a transformação da correção da prova em uma verdadeira loteria. Ninguém sabe, ao certo, quantos pontos vai obter. Aos alunos, cabe fazer o exame e torcer ou rezar por uma boa sorte.
O ponto mais notável em todos esses desacertos é a recepção passiva dos resultados do Enem como um tipo legítimo de credenciamento pela maior parte das escolas.
Já passou da hora de as boas escolas privadas manifestarem seu desapreço pela grande loteria que a prova se tornou, após serem depositadas tantas e tão justas expectativas sobre ela.
Professor titular da Faculdade de Educação da USP
Artigo publicado na Folha de São Paulo, edição de 17 de janeiro de 2012