Entrevista concedida pelo coordenador do ESP à Gazeta do Povo

Gazeta do Povo – Qual a sua opinião sobre o capítulo 3º do Livro Didático Público, da rede pública de ensino do Paraná, dedicado à disciplina de Educação Física?

Miguel Nagib – A análise feita no texto é declaradamente marxista. De acordo com a visão que o autor pretende transmitir aos alunos, o esporte é fundamentalmente um instrumento usado pela classe dominante (identificada com o capitalismo) para “explorar e dominar as massas, com o intuito de impor idéias, tanto políticas quanto filosóficas, sobre os modos de produção e principalmente de consumo”.

O texto é tendencioso do começo ao fim. Tem-se a impressão, em certas passagens, de que foi escrito durante uma sessão espírita. Parece que baixou o Proudhon no camarada e ele começou a psicografar frases inconexas e a fazer extrapolações indevidas, como nesse comentário sobre o conceito de “campeão”. Diz o texto: “não existe o termo ‘os campeões’, apenas uma equipe é vencedora. Não é diferente quanto ao acesso aos bens de consumo, pois poucos dispõem de recursos financeiros e conforto material. Mas por que no esporte não pode haver mais de um vencedor? Como também em nossa sociedade, por que não temos igualdades na distribuição de renda?” Essa técnica de argumentação é utilizada para desnortear o leitor.

O texto é um imenso emaranhado de sofismas. Eu teria trabalho para desgrudar uma frase da outra e examiná-las de forma crítica, separadamente. A técnica utilizada pelo autor para levar os alunos a exercer o chamado “pensamento crítico” – que nunca é crítico em relação às atrocidades cometidas nos regimes comunistas – não é a da demonstração racional, mas a da insinuação maldosa. O texto é repleto de perguntas retóricas, maldosas, que induzem claramente o estudante a fazer uma determinada abordagem do problema.

Gazeta do Povo – As apostilas não dão margem a meio-termo ou a interpretações próprias do leitor. Os textos colocam tudo no campo dualista do bem versus o mal, do comunismo versus capitalismo. E os papéis também já estão definidos: o comunismo é o bem, o capitalismo é o mal. Como isso pode interferir de forma prática no aprendizado e na vida futura dos estudantes?

MN – Na verdade, o texto não fala do comunismo. O autor critica, de forma superficial e preconceituosa, apenas o capitalismo. Se falasse do comunismo, os alunos poderiam ao menos comparar os dois regimes, o que o autor do texto, ao que parece, pretendeu evitar.

Além de cercear a liberdade de aprender dos alunos, esse tipo de material deforma a visão do estudante sobre a realidade.

Acredito que a maioria dos alunos, guiada pelo bom-senso e educada pela experiência, acaba se livrando, com o tempo, dessa visão deformada; mas uma boa parte deles, principalmente aqueles que mais se identificaram e se comprometeram com essas idéias, vai carregar essa visão para o túmulo.

Observe a insistência do autor em obter a adesão dos alunos, mediante a repetição de perguntas retóricas ao longo de todo o texto. Uma vez prestada essa adesão pelo aluno, aumenta muito o custo psicológico de uma retratação, por mais elementos que ele encontre para fazer isto. O orgulho intelectual é uma força poderosa e os militantes sabem disso muito bem.

Gazeta do Povo – Há aspectos verdadeiros e pertinentes no texto?

MN – Certamente. A mentira não existiria se não se apoiasse na verdade. Seria ingênuo ignorar a influência negativa do dinheiro sobre os esportes – assim como sobre a arte, a política, a religião, a educação, enfim, sobre tudo o que é feito pelo ser humano.

É preciso, sem dúvida, examinar o lado sombrio da relação dos esportes com o dinheiro. Mas isto deve ser feito de forma equilibrada e objetiva, pesando aspectos negativos e positivos. Não é o que vemos no texto.

Por outro lado, uma crítica honesta não poderia deixar de mencionar, além dos aspectos positivos e negativos do regime capitalista, também a situação dos esportes nos países que adotam o regime comunista, isto é, o uso que esses regimes fazem do esporte e o modo como o esporte se desenvolve nesses regimes.

É muito fácil falar mal do capitalismo real a partir de critérios de julgamento ideais. Mas se você comparar o capitalismo real com outros regimes reais, que existem ou existiram – como o comunismo e o nazismo, por exemplo – vai chegar a conclusões muito diferentes. Vai ver que não é tão mau assim. O mesmo vale para outros alvos da crítica esquerdista, como os EUA e a Igreja Católica. Compare, por exemplo, o “imperialismo” americano com o imperialismo soviético e me diga sob qual desses dois jugos você preferiria viver ou ter vivido, se fosse obrigado a escolher.

Pois bem, o texto só fala mal do capitalismo e sempre a partir de critérios de julgamento ideais. Nesse sentido se pode dizer que é uma obra irresponsável e leviana, sem nenhum compromisso com a verdade histórica e a objetividade científica.

Gazeta do Povo – No enfoque dado pelo autor, onde fica a “Educação Física” propriamente dita?

MN – Ao falar da “potencialidade transformadora” do ensino da educação física, o autor deixa claro que pretende usar sua disciplina para fazer dos alunos “agentes de transformação social”. A prática esportiva é secundária; o que importa é fazer a revolução gramsciana. Isto já acontece há muito tempo com o ensino de História e Geografia. Agora, até a Matemática e a Educação Física entraram na dança.

Gazeta do Povo – Quais os riscos para a formação intelectual dos jovens da abordagem ideologizada como está das apostilas do Paraná?

MN – O risco é a ignorância. Como eu disse, o texto transmite uma visão deformada da realidade. O problema é que, como essa visão é compartilhada pelo grupo e, mais tarde, será corroborada por outros professores militantes – inclusive no vestibular ideologicamente contaminado, como a Gazeta do Povo demonstrou duas semanas atrás –, o estudante passa a acreditar e a viver numa realidade paralela.

Note bem: muito provavelmente, ele vai continuar desfrutando à larga de todos os benefícios que o regime capitalista proporciona, mas será sempre um “crítico do sistema”, se é que você me entende.

Gazeta do Povo – O esporte pode ser entendido como instrumento de alienação igual ao que sugere a apostila?

MN – Sem dúvida. Durante o nazismo, por exemplo, o esporte era um campo de afirmação da pretendida superioridade ariana. Em Cuba, o esporte é usado como sucedâneo incruento de uma guerra imaginária contra os EUA. O governo cubano investe todas as suas mirradas energias nessa pantomima de guerra. Atleta cubano recebe tratamento especial, tem direito a comer um frango por semana em época de competição, etc. Só não pode fugir do país.

O uso do esporte para manipular politicamente a população pressupõe uma sociedade fechada, com pouco acesso à informação. Nas democracias ocidentais isto é muito mais difícil.

Nos países capitalistas, a televisão e os meios de comunicação em geral são especialistas em criar artificialmente um clima de excitação coletiva em torno de certos eventos esportivos, como acontece no Brasil com a Copa do Mundo. É evidente que existe manipulação nessas ocasiões e que muita gente ganha dinheiro com isso. Mas ninguém é obrigado a comprar camiseta da seleção e a sair pela rua tocando corneta se não quiser.

Gazeta do Povo – A apostila dá a entender que incentiva-se o pobre a fazer esporte para ele não fazer a revolução. Não se trata de uma leitura muito reducionista da atividade esportiva?

MN – Gostaria de saber de onde ele tirou essa idéia. Acho isso ridículo. Tão ridículo quanto aquele “handebol cooperativo” que o autor inventou, um jogo impossível de ser jogado e mais ainda de ser assistido. Imagine como seria o mundo se o autor desse texto pudesse “reinventá-lo” a partir dos seus próprios conceitos.

Gazeta do Povo – O que dizer das tais relações explícitas e implícitas que a apostila sugere ao final deste capítulo?

MN – Essa é a parte mais confusa e perturbadora do texto. Pelo que entendi, o autor sustenta que o esporte promove valores úteis ao capitalismo – como o respeito às regras, o espírito de equipe, etc. – e que, por isso, é usado pelo capitalismo como “instrumento de dominação das massas”. Acho que ele quis mostrar como o capitalismo é “interesseiro”. E daí? Aonde ele quer chegar? Pelo raciocínio, parece que o que é bom se torna mau apenas pelo fato de servir aos interesses da classe má. Será que ele sugere que nós abandonemos aqueles valores apenas para “sabotar” o capitalismo?

O que o autor não enxerga, coitado, é a afinidade ontológica entre o esporte de competição – preferido por 9 entre 10 pessoas – e o regime capitalista. Ambos exigem respeito às regras, espírito de equipe, esforço para aprimorar o desempenho, aceitação da derrota, vontade de vencer, recompensa pelo esforço, etc.

Não é por acaso que, nos países comunistas, apesar do fracasso econômico, a atividade esportiva sempre manteve um nível de desempenho comparável ao dos países capitalistas: eles não aboliram essas características inerentes ao esporte de competição, ao contrário do que gostaria de fazer o autor do texto, como se vê por esse ridículo “handebol cooperativo”.

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