Editorial da Gazeta do Povo, edição de 14 de maio de 2014.
Avaliações precisam ser embasadas em conteúdos sólidos e não em interpretações ideologizadas ou simplistas da realidade. Caso contrário, servirão apenas para medir o grau de adesão do aluno a um perfil ideológico predeterminado
Qual é o objetivo de avaliações como o Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) e o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade)? Avaliar os conhecimentos do estudante, tentando mensurar de forma objetiva o seu nível de aprendizagem? Talvez não. Preocupado ao ver que seus alunos não tinham bom desempenho no Enade, o engenheiro e doutor em Economia pela Universidade de Chicago Claudio Haddad resolveu fazer a prova para tentar entender melhor o processo de avaliação. Aliás, fez o mesmo teste duas vezes. Em um deles, ele conta em entrevista à revista Veja, foi mal e errou metade da prova de conhecimentos gerais, mesmo tendo respondido usando os conhecimentos adquiridos durante sua longa carreira acadêmica. Já na segunda vez, marcou as opções que tinham viés ideológico mais forte, imaginando serem as de preferência dos avaliadores. Estava certo: das 8 questões de múltipla escolha, o engenheiro acertou 7.
Em uma das questões, por exemplo, o enunciado perguntava se era correta a afirmação de que “toda pessoa tem direito ao respeito de seus semelhantes, a uma vida digna, a oportunidade de realizar os seus projetos, mesmo que esteja cumprindo pena de privação de liberdade, por ter cometido delito criminal, com trâmite em julgado”. Embora os presos devam ser tratados com humanidade, é no mínimo questionável que tenham o direito de realizar seus projetos. Em muitos casos, aliás, a privação de liberdade tem como efeito positivo justamente evitar que algumas pessoas continuem a colocar em práticas seus projetos criminosos. Mas para quem elaborou a prova do Enade respondida por Haddad, a afirmação está correta. Em outras perguntas do teste, a simplificação exagerada dá margem a interpretações ideologizadas, como na afirmação de que a crise financeira mundial foi desencadeada pelo estouro da bolha de empréstimos especulativos e imobiliários dos mercados americanos e europeus, sem levar em conta os vários outros fatores envolvidos naquele contexto.
Ao promover como corretas interpretações carregadas ideologicamente, exames que deveriam mensurar da forma mais objetiva possível o conhecimento dos alunos passam a mensagem de que determinadas interpretações e posicionamentos ideológicos são as posturas corretas, minando a capacidade de debate e colocando por terra a construção de uma sociedade minimamente plural. Mesmo em escolas onde os professores buscam ensinar sem se deixar levar pelos modismos ideologizantes, aos poucos o “padrão MEC” de avaliação poderá se impor. Afinal, nenhum colégio ou curso preparatório quer que seus alunos não tenham um bom desempenho no Enem. E se isso acontecer, pais e os próprios alunos irão se insurgir, argumentando que o conteúdo ensinado não corresponde ao que é pedido nas avaliações. O risco é que os conteúdos acabem sendo “adaptados” para corresponder às provas, provocando uma distorção perigosa.
Exames de desempenho como o Enem e o Enade são uma importante ferramenta para se avaliar cada estudante, servindo também para mensurar a qualidade do ensino em geral. Só que para poderem cumprir tal papel, as avaliações precisam ser embasadas em conteúdos sólidos e não em interpretações ideologizadas ou simplistas da realidade. Caso contrário, as provas servirão apenas para medir o grau de adesão do aluno a um perfil ideológico predeterminado e não o seu conhecimento. E mais: como os resultados das avaliações são usados como subsídio e justificativa para a elaboração de políticas públicas na área da educação, poderemos ver o próprio Estado – que já é o responsável pela elaboração e aplicação de exames como Enem e Enade – pensando maneiras de alimentar ainda mais a fera do ensino ideologizado.
Avaliar de forma objetiva conteúdos complexos certamente não é fácil e exige tanto daqueles que elaboram quanto dos que corrigem as questões uma preparação e um domínio do tema por vezes incompatíveis com os padrões brasileiros. Entretanto, é o único caminho aceitável. Quando o conhecimento dá lugar ao subjetivismo ideológico, a “achismos” simplistas em vez de conteúdos reais, constrói-se uma geração incapaz de pensar criticamente, que prefere respostas prontas ao embate de ideias e posições. E sem debate não é possível construir uma sociedade melhor.