Por Cláudio de Moura e Castro
Apesar de suas aspirações a arauto do progresso e da ciência, a universidade convive com algumas heranças do passado. Uma delas é curiosa, mas inofensiva.
Uma vez por ano, todos se vestem como na era medieval, com becas pretas e chapéus ridículos. Ora vejam, esses eram anos obscurantistas, carentes de liberdade de expressão e de leitura, pois nem a Bíblia podia ser lida sem autorização, arriscando-se os transgressores a terminar assados em praça pública. O individualismo era inaceitável e as irracionalidades borbulhavam. Por que, então, se fantasiam de Idade Média os membros de uma instituição que se propõe a ser o oposto disso tudo? Tais liturgias pitorescas, contudo, carecem de consequências nefastas.
Não obstante, há um outro resíduo do passado, este de grande relevância, pelo que tem de bom e de mau. Trata-se da liberdade de cátedra, postulada por Wilhelm von Humboldt ao propor o seu modelo de universidade, materializado na Universidade de Berlim, no início do século 19. Eram três os pilares. O primeiro, a liberdade dos professores para defenderem as suas ideias, por mais impopulares ou cáusticas que fossem. O segundo, a liberdade de escolher os tópicos de sua pesquisa. O terceiro, o certificado de garantia, plasmado na estabilidade da cátedra, impedindo que eles perdessem o emprego caso cutucassem os poderosos.
O papel dessas liberdades na História da civilização ocidental não admite dúvidas. Sua restrição é testemunha, com papel passado, dos autoritarismos de Hitler, Mussolini, Stalin e até dos episódios tristes do macarthismo. Mais adiante, a História da América Latina registra os choques dos professores com os ditadores de plantão e o papel corrosivo que tiveram essas colisões no encurtamento dos regimes autoritários.
Porém as leis mudaram o alcance desse princípio. De um lado, garantem essa liberdade para todos, portanto, também para professores. De outro, restringem a liberdade em certos assuntos. Por exemplo, defender racismo ou terrorismo é proibido ou pode trazer ações legais. Portanto, a liberdade de cátedra é parcialmente esvaziada pelo marco legal. Essa questão é jurídica e trata de um confronto entre lei maior e lei menor.
O que sobrou? Um lado bom, um lado supremamente embaralhado e um lado ilegítimo.
O lado bom – Da intenção original de garantir liberdade política, nada a remendar, nem pensar em fragilizar tais garantias.
O lado embaralhado – A versão original da liberdade de cátedra começa a mostrar seu desgaste e suas ambiguidades. Que liberdade deve ter um professor de uma instituição católica para pregar que Deus morreu? Numa instituição privada, com fins de lucro, os professores terão liberdade de pregar a queda do sistema capitalista? E nas públicas? Os professores de História devem poder pregar em seus cursos uma visão marxista da História ou o materialismo dialético – como ocorre amiúde? Que liberdade deve ter um professor para entrar em rota de colisão com as políticas e crenças dos donos da instituição? Nesses assuntos, estamos num limbo. Pessoalmente, vejo a necessidade de limites. Com direitos vão as responsabilidades. Há padrões de rigor intelectual a serem respeitados. Minimamente, os dois lados de uma controvérsia devem ser apresentados, afinal, a cátedra é para educar, não para doutrinar ou convencer. E há os “combinados”. É no contrato inicial do professor que se determina o que pode e o que não pode.
Podemos estender essas liberdades para o ensino básico? Será que devem incluir a forma de ensinar? A escola deve ter o direito de impor uma linha pedagógica aos seus professores? Visto do outro lado, o professor deve ser livre para escolher o seu método? O alcance da liberdade deveria ser diferente em escolas públicas ou privadas? Novamente, é preciso acertar antes.
A liberdade de pesquisa, aparentemente tão anódina, não é menos prenhe de ambiguidades. Nossa pesquisa até que é abundante, mas padece de uma crônica pulverização temática, impedindo a criação de massa crítica em alguns temas estratégicos para o País. Se há completa liberdade de escolha de tema, estaremos condenados a seguir com esse picadinho? É possível orientar a pesquisa pelos financiamentos. Mas isso apenas transfere o problema para os professores que vão decidir os assuntos financiados. Quanta liberdade devem ter, diante do que o Estado percebe como prioridades estratégicas para a Nação?
O lado ilegítimo – O conceito de liberdade se espraia para assuntos administrativos, alcance ainda mais nebuloso. O princípio vem sendo invocado para justificar a liberdade de ensinar o que está fora das ementas, de não as seguir ou de criar as suas próprias, ao arrepio da orientação acadêmica da instituição. Ou de oferecer um ensino fora da qualidade esperada ou aulas sem preparação adequada. Tampouco é defensável o direito de não cumprir os horários estabelecidos.
Parece razoável supor: quem foi contratado e ganha para fazer pesquisa não tem liberdade para não fazê-la. Na prática, é descomunal a proporção de professores das federais que não faz pesquisa, apesar de contratados em tempo integral. Estamos espichando demais.
No fundo, vivemos uma situação triplamente delicada. 1) A liberdade de cátedra distanciou-se dos propósitos de Humboldt, entrando em territórios pantanosos. 2) Sua extensão para a gestão do ensino, além de ilegítima, está sendo usada para justificar irresponsabilidades. 3) Finalmente, nem há discussão séria sobre o assunto nem se forja um consenso acerca dos limites dessa liberdade. Nesse assunto, vivemos no pior dos mundos, com um princípio nobre sendo brandido ou interpretado ao sabor das conveniências.