Minha trajetória é atípica, por isso devo mencioná-la para evitar certos lugares-comuns na interpretação da caracterização que farei do problema, que é o da instrumentalização de escola e universidade para finalidades políticas. Tal qual muitos outros adolescentes de minha geração, pertenci a um senso comum que se pode classificar como marxista. Bom, era ao menos marxista o suficiente para eu ter presenteado uma namorada na época com um exemplar de bolso do Manifesto do Partido Comunista e para que em minhas primeiras participações como eleitor, tenha votado em figuraças da esquerda carioca como Jandira, Carlos Minc, Chico Alencar, etc. Mas depois como aluno de Ciências Sociais, as aulas do primeiro semestre já me frustraram por permitirem a constatação de falhas na teoria de Marx. Assim foi semestre após semestre do curso, primeiro na UERJ e em seguida na Unicamp. Decisiva, contudo, foram as leituras d’A Ideologia Alemã que me incomodaram pelo modo como se remete a filosofia, a religião, a arte, a cultura em seu conjunto a uma base econômica que estabelece a luta de classes numa sociedade.
Portanto, jamais poderia eu me opor ao ensino e estudo de Marx e autores da tradição marxista, pois me diferenciei filosoficamente de tal corrente pela via da leitura dela mesma sem qualquer influência “de direita”. Mas quando se fala de doutrinação, não se faz referência à erudição, ao senso crítico ou a altos debates, mas à negação e até proibição disso tudo como experiência em sala de aula. De fato, a doutrinação é apenas o elemento mais exposto encontrado entre causas e efeitos que remetem ao sistema educacional por completo e seus tão vergonhosos resultados. Não estamos falando de aulas de Chico de Oliveira, Carlos Nelson Coutinho, Ernesto Laclau ou qualquer outro grande intelectual marxista, mas de professores pessimamente formados em pedagogia e licenciaturas várias, que mal sabem decorar as palavras de ordem da propaganda eleitoral do PT, que atuam como doutrinadores. É disso, e não menos, que se trata. O analfabetismo funcional parece até lucro onde se tem motivos para esperar apenas analfabetismo puro e simples.
Ao invés de se posicionar diante do grave problema, inimigos do projeto Escola Sem Partido parecem preferir a fuga para ideais abstratos, não por acaso os mesmos que impõem aqueles rumos que nos trouxeram ao fundo do poço. O aluno ideal debate livremente com o professor ideal, que jamais abusa de sua autoridade para proselitismo partidário nem pune alunos refratários à sua pregação, já que idealmente não são hierarquicamente desiguais. As denúncias e gravações divulgadas que são legião, provam não apenas que aquele ideal está longe de ser atingido mas que ele falsifica o que estudantes efetivamente sofrem todos os dias no país. Além disso, é famosa a coleção de conteúdos pitorescos, até bizarros, de tentativa de manipulação da opinião política em livros didáticos que ofendem alunos inteligentes, e a muitas famílias deixam escandalizadas.
Patética é a fé que deposita esperança num tal modus operandi para “conscientizar” e “emancipar” aqueles “oprimidos”, os quais no máximo estão sendo adestrados a digitar 13 (ou genéricos) e verde para confirmar na urna. Na maior parte dos casos, nem isso conseguem mais, restando apenas o lado puramente negativo de impedir que se faça algo intelectualmente enriquecedor com o tempo dos alunos na escola. Não deixa de ser curiosa a ideia de danificar o “capitalismo” num país levando à quase extinção da mão de obra tecnicamente capaz em praticamente todos os setores do mercado. Para a atividade intelectual e científica, não há dúvida de que tal processo tenha sido fatal, tornando-se impossível distinguir na paisagem um exegeta de clássicos da filosofia de um black bloc que parece até realizar mais eficazmente a proposta revolucionária de nosso modelo “pedagógico”. O professor é um black bloc mutilado, ou o black bloc é o professor plenamente consumado, concluímos.
Aspectos jurídicos da lei proposta assim como pertinência do uso do cartaz que expõe direitos e deveres a serem respeitados durantes as aulas, são objeto de controvérsias e representantes do Escola Sem Partido naturalmente estão aí para enfrentá-las, como se faz na democracia. Mas por mais contrária que seja a posição quanto a este projeto específico, não se justifica a mera indiferença, a negação ou até a defesa aberta da doutrinação como prática comum e aceitável. Melhor dito, explica-se apenas por lealdade ao “espírito de corpo” que mobiliza conjuntamente cursos de humanas e de formação de professores, sindicatos, partidos políticos, em suma, o óbvio interesse “conservador” apegado ao atual estado de coisas nesta área.