Por Miguel Nagib
No último domingo, enquanto milhares de pessoas denunciavam o despudorado viés ideológico das questões do ENEM, o músico Roger Moreira chamava a atenção, no Twitter, para um problema ainda mais grave e preocupante: “Ganham zero [as] ideias que desrespeitem os direitos humanos. Ué? Não é prova de redação? Ou é controle do pensamento?”
Roger se referia à exigência de que o candidato elabore, na redação, uma proposta de intervenção para o problema abordado, “respeitando os direitos humanos”. Segundo o INEP, é necessário que o candidato “não rompa com valores como cidadania, liberdade, solidariedade e diversidade cultural”, sob pena de zerar na redação.
Ao impor esse requisito, porém, o próprio INEP desrespeita claramente os direitos humanos, já que as liberdades de pensamento, opinião e expressão, além de garantidas pela Constituição Federal, estão previstas na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Condicionar o acesso de um estudante ao ensino superior a que ele possua ou expresse determinada opinião sobre o que quer que seja configura, sem sombra de dúvida, uma forma acintosa de cerceamento àquelas liberdades.
Para piorar a situação, os candidatos e os corretores das provas não estão familiarizados com a legislação brasileira sobre direitos humanos ‒ o que de resto não é exigido pelo INEP. Assim, o mais provável é que todos considerem como “direitos humanos” um punhado de clichês politicamente corretos consagrados na academia e nos meios de comunicação. É o que sugere aliás o INEP, ao falar vagamente em “cidadania, solidariedade e diversidade cultural”, expressões que remetem de forma inequívoca ao discurso da esquerda.
Este ano, mais de 7 milhões de estudantes tiveram de escrever uma redação sobre a violência contra a mulher na sociedade brasileira. Cuidava-se, é claro, de uma provocação ideológica, e é de supor-se que muitos candidatos tenham ficado temerosos de expressar seu pensamento.
E com razão. Basta pensar no possível desfecho das seguintes situações: o candidato A sustenta, em sua redação, que a proibição do aborto é uma forma de violência contra as mulheres; e apresenta como proposta de intervenção a descriminalização dessa prática. Já o candidato B relativiza o problema da violência contra as mulheres; identifica, entre suas causas, o comportamento das próprias mulheres; e propõe como solução a mudança desse comportamento.
Como serão corrigidas essas redações? Se a legislação brasileira fosse aplicada, o candidato A deveria receber zero, pois a Convenção Americana sobre Direitos Humanos estabelece que o direito à vida deve ser protegido pela lei “desde o momento da concepção”. Mas, se prevalecerem os clichês do politicamente correto, não só isso não vai acontecer, como quem pode acabar levando zero é o candidato B, embora sua proposta de intervenção não desrespeite a legislação relativa aos direitos humanos.
Ora, nenhum dos candidatos deveria ser punido ou beneficiado por possuir ou expressar sua opinião. Ninguém pode ser obrigado a dizer o que não pensa para poder entrar numa universidade. O exemplo demonstra, em todo caso, que, além de ferir a liberdade de consciência e de crença dos candidatos, a exigência do INEP, na prática, transforma a prova de redação do ENEM num imenso filtro ideológico de acesso ao ensino superior.
No fim das contas, Simone de Beauvoir era apenas o boi de piranha do ENEM.
Aguardemos para ver se o Ministério Público Federal vai tomar alguma providência contra mais essa afronta à Constituição perpetrada pelo governo petista.