Por Sérgio Fausto *
Dias atrás, um amigo dos meus filhos me chamou a atenção para uma apostila de História do Brasil recebida no cursinho Anglo Vestibulares. Eram duas páginas sobre o primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso. Não tivesse ele me dito qual a origem do texto, eu teria imaginado que se tratava de um documento partidário.
Já de início, afirma sobre a primeira eleição de FHC, em outubro 1994: “Com todos esses elementos a seu favor, o surpreendente não foi ele ter vencido já no primeiro turno e, sim, o fato de Lula ter obtido 17 milhões de votos.” A pregação partidária não pára por aí. Chama de “remendos que não atacaram os verdadeiros problemas do país” as reformas constitucionais que eliminaram monopólios estatais, definiram regimes de concessão de serviços públicos, permitiram a privatização de empresas, modificaram o regime da Previdência Social, etc.
O governo do ex-presidente é descrito como uma administração obcecada por apenas dois objetivos, “aumentar a receita e aprovar a emenda da reeleição”. Concede-se que a vitória sobre a inflação foi uma conquista, “a única realização importante de FHC”, mas se retoma a pregação partidária para, em seguida, se sentenciar que ele “não tinha uma política econômica, mas apenas uma política antiinflacionária”. Quanto à aprovação da emenda da reeleição no Congresso, o tom é abertamente acusatório: “Deram cargos, verbas, compraram votos, fizeram leis favoráveis a grupos políticos e econômicos.”
Como se explicaria, então, a vitória de FHC em outubro de 1998, quando foi reeleito em primeiro turno com 53% dos votos válidos? A explicação começa em forma de advertência aos estudantes e termina em pura invencionice: “Não pense você que o resultado da reeleição refletiu fielmente a popularidade de FHC. Enquanto (…) as pesquisas eleitorais incluíram uma opção ‘outro’, ao lado dos demais candidatos, esse ‘outro’ invariavelmente ganhava.”
Fosse um caso isolado, não me animaria a ir além de recomendar aos pais que pagam – e não pagam pouco – que interpelassem o Anglo Vestibulares, quem sabe exigindo parte da mensalidade de volta. Afinal, não posso acreditar que os principais exames de qualificação para o ensino superior estejam de tal modo contaminados pela propaganda partidária. Ocorre que não se trata de caso isolado, como a imprensa tem mostrado com freqüência cada vez maior nos últimos tempos.
A verdade é que a desonestidade e o baixo nível intelectual, de mãos dadas em nome da causa, se espraiaram no setor da educação, de alto a baixo, do ensino fundamental ao ensino superior (e até na pré-escola, quando sob a gestão do MST). O processo vem de meados da década de 1980 e está ligado, de um lado, à deterioração das condições de formação e trabalho dos professores e à perda de prestígio social da categoria e, de outro, à arregimentação e instrumentalização política de parte importante dos educadores por movimentos, sindicatos e partidos, em especial o PT.
Detesto generalizações: não estou dizendo que todo educador é militante ou simpatizante partidário, tampouco que todo educador com atividade partidária é ignorante ou propenso à desonestidade intelectual. Mas quem quer que conheça o mundo da educação – insisto, do ensino fundamental ao ensino superior – sabe exatamente do que eu estou falando. Às vezes por deficiência de formação, às vezes por ideologia, às vezes pela mescla dos dois, o conhecimento cede lugar à doutrinação ou distorção rasteira. O problema é especialmente grave na área das ciências humanas, justamente porque são elas que oferecem os conceitos para a compreensão da História, da política e da sociedade. Constituem, assim, o terreno propício a “fazer a cabeça das pessoas”.
Conhecimento neutro não existe. Sempre haverá interferência de valores na sua produção e transmissão, em particular nas ciências humanas. O fato, porém, é que uma sociedade que se quer democrática e moderna deve ter critérios para separar o que é propaganda ideológica do que é conhecimento (além de investir mais neste). E deve estar permanentemente vigilante para reagir toda vez que essa fronteira for ultrapassada. Especialmente vigilantes devem estar aqueles que têm formação e compromisso profissionais com a produção e a transmissão do conhecimento (e da informação).
No Brasil, a reação a esse estado de coisas só agora começa a esboçar-se. Ela é tão mais importante em face do risco de perpetuação do atual esquema de poder no governo federal depois de 2010, com ou sem Lula. O próprio presidente tem sido um mestre em reescrever a História ao seu feitio, para engrandecer a si e ao seu governo, a ponto de se atribuir, não poucas vezes, o feito de ter acabado com a inflação no Brasil. Marteladas pela propaganda governamental, que logo poderá receber o reforço da “TV Pública”, em condições econômicas favoráveis e no terreno lavrado por anos de persistente pregação partidária, mentiras como essas se tornam verdades aceitas pela maioria das pessoas.
Há, assim, o risco de que a democracia brasileira vá sendo espremida por um movimento em pinça, com uma tenaz operando de cima para baixo, criando as condições legais do continuísmo, e outra de baixo para cima, adensando o caldo de cultura favorável à aceitação do que aí está (e quer ficar).
Assim como detesto generalizações, não gosto de raciocínios paranóicos: não estou dizendo que esse movimento em pinça obedeça a uma coordenação geral enfeixada em mãos manipuladoras que operam a partir ou em nome do Palácio do Planalto. Não é isso. Mas quem quer que tenha um pouco de faro político reconhece o risco do continuísmo. E quem quer que tenha firmes convicções democráticas e pluralistas sabe que é preciso a ele se opor, de baixo para cima e de cima para baixo.
Sergio Fausto, cientista político, ex-assessor do Ministério da Fazenda, é coordenador de Eventos e Projetos do Instituto Fernando Henrique Cardoso
Fonte: O Estado de São Paulo, edição de 30 de novembro de 2007. Artigo publicado sob o título “Linhas tortas”.