Mensagem enviada por Felipe Azevedo Melo, em 20.07.2010.
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Quinta-feira, 15 de julho de 2010, 19h00. Local: Pavilhão João Calmon. É hora da aula de Teoria Geral de Empreendimentos 2 (TGE-2; na prática, a disciplina deveria se chamar Macroeconomia Aplicada à Administração). A professora, do Departamento de Administração, divide a turma em grupos após tecer rápidas considerações sobre o mercado monetário e distribui cópia de um texto para cada grupo. O objetivo da atividade é responder a sete questões sobre o material distribuído. O texto é um resumo de um artigo intitulado “A independência do Banco Central em debate”, de autoria do economista Jorge Alano Silveira Garagorry (o artigo original pode ser acessado aqui).
O assunto é bastante polêmico. Do ponto de vista normativo, não há consenso sobre a viabilidade e as vantagens (e desvantagens) ensejadas pela autonomia do BC. O tema sempre gera discussões acaloradas, e o que não falta são defensores e detratores da autonomia. O texto se encaixa inteiramente no segundo grupo, o daqueles que são veementemente contra a autonomia do BC. Até aí, tudo bem – cada um tem o direito de defender o que acha melhor.
Entretanto, quando se examina os argumentos do autor, sua credibilidade acadêmica cai por terra. O que se vê não é um raciocínio científico embasado em argumentos técnicos, mas um desfile de sofismas de caráter marxista com uma precária roupagem contemporânea. Abaixo, apresento alguns dos pontos-chave do texto (os trechos em negrito são grifos nossos):
‘Mensalmente o COPOM se reúne para decidir o que fazer com a taxa de juros. Porém, antes da reunião, o BC consulta “o mercado” – leia-se os economistas-chefes dos maiores bancos – a respeito de suas expectativas quanto ao comportamento futuro das principais variáveis macroeconômicas da economia brasileira (tais como: inflação futura ; crescimento esperado do PIB, comportamento do Balanço de Pagamentos, etc.). Estas expectativas, ao serem consolidadas pelo BC, são tratadas como se tivessem uma origem pulverizada, isto é, como se tais opiniões fossem independentes entre si. De posse dessas estimativas o COPOM, por meio de um modelo econométrico conhecido pelos economistas-chefes, acaba “decidindo” qual taxa de juros nominal é compatível com as metas de inflação e com as expectativas do “mercado”. No final sai uma ata da reunião que fundamenta tecnicamente a decisão tomada em relação aos juros. Aparentemente uma simples decisão lógica e técnica…
Essa decisão “técnica”, na realidade, esconde um jogo de cartas marcadas ou “jogo de compadres”.O BC consulta os principais interessados na manutenção da maior taxa de juros suportável politicamente. Tais representantes do “mercado” representam os próprios detentores dos títulos da dívida pública, os quais serão remunerados pela taxa de juros em questão. Logo, está em discussão quanto os detentores dos títulos da dívida pública vão receber de renda. Não é de se estranhar que o BC tenha sido tão ágil para elevar abruptamente a taxa de juros no final de 2002 e seja tão gradualista na hora de reduzi-la, embora continue consultando as expectativas dos mesmos economistas de bancos.
Ora, é como se, mensalmente, os patrões consultassem seus empregados quanto ao salário que eles querem receber! Os empregados só teriam que tomar o cuidado de não quebrar o patrão. Se, por acaso, eles percebessem que o patrão estava com uma dívida crescente, para poder pagar-lhes cada vez maiores salários, deveriam recomendar que o patrão cortasse seus gastos pessoais, isto é, efetuasse reformas em seu orçamento; que mudasse seu estilo de vida, etc.’
[…]
‘Não é por acaso que vemos o BC sendo ocupado por legítimos representantes do capital financeiro internacional. Esse fenômeno está inserido na lógica da chamada “globalização da economia”. Como nos ensina François Chesnais (2001), por trás dessa expressão, aparentemente neutra, “esconde-se um modo específico de funcionamento e de dominação política e social do capitalismo” (2001: 7). Ele refere-se ao fato de que o comando do movimento da acumulação, na atualidade, encontra-se nas mãos das instituições integrantes do capital financeiro internacional. Tais instituições, caracterizadas como rentistas, comandam a repartição da renda e o ritmo do investimento produtivo, consequentemente, o nível de emprego, por meio da posse de ativos patrimoniais e de diversos tipos de operações realizadas nos mercados financeiros.
O contexto da discussão sobre independência do BC deve ter claro que vivemos um momento em que o mundo financeiro se afirma como uma força autônoma, capaz de pôr em cheque governos, arruinar determinadas economias nacionais de um dia para outro e redirecionar a riqueza mundial, tanto entre nações como entre setores econômicos.’
[…]
‘Somente para ilustrar, mencione-se que, quando o BC eleva a taxa de juros, ele provoca uma série de transferências de riqueza: do setor produtivo para o setor financeiro; do orçamento público para os aplicadores em títulos da dívida; dos tomadores de empréstimos para os bancos; e assim por diante. Sua atuação na política cambial também provoca redistribuição da riqueza. Uma desvalorização cambial altera o poder de compra de todos os brasileiros em relação ao resto do mundo; eleva os lucros dos setores exportadores e eleva os custos dos setores importadores; eleva os preços internos, reduzindo salário real; eleva a dívida das empresas tomadoras de empréstimos em moeda estrangeira; eleva a dívida pública, já que uma boa parte dela, ainda que interna, está indexada à variação cambial etc.
Uma sobrevalorização cambial, por sua vez, também implica enormes redistribuições de riqueza, conforme pode ser observado na seguinte passagem de um autor insuspeito como o economista Joseph Stiglitz: “O que torna a especulação lucrativa é o dinheiro proveniente dos governos, apoiados pelo FMI. Quando o Fundo e o governo brasileiro, por exemplo, gastaram aproximadamente 50 bilhões de dólares para manter a taxa de câmbio em nível supervalorizado no fim de 1998, para onde foi o dinheiro? Ele não desaparece no ar, acaba indo para o bolso de alguém – grande parte desse dinheiro foi para o bolso de especuladores. Alguns destes podem perder, mas outros especuladores como um todo somam uma quantidade igual à que o governo perde” (Stiglitz, 2002: 245).’
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‘Quanto à política fiscal, cabe salientar que, seja por meio da política monetária ou da política cambial, o BC é capaz de aumentar ou reduzir as transferências de recursos públicos para o setor financeiro, isto é, transformar receita pública, arrecadada por meio de impostos, em lucros privados, e ainda decidir se tais lucros serão apropriados por nacionais ou estrangeiros. Portanto, decisões diárias do BC alteram a estrutura do orçamento público, determinando o volume de recursos que serão destinados ao serviço da dívida e o que restará ao governo para desempenhar as funções que a sociedade espera dele. Como vemos, o BC pode ser autônomo em relação ao governo, mas o governo não é autônomo em relação ao BC.’
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‘A rigor, o Estado mantém uma relação orgânica com o capital. Por meio da política econômica, ele acentua as transferências de mais-valia dos setores retardatários para os setores de vanguarda, de forma que os fluxos de capitais se dirigem aos ramos de maior composição orgânica do capital. Já para o brasileiro Décio Saes “o papel do Estado enquanto organizador da hegemonia no seio do bloco no poder se revela justamente pela política econômica e esta revela a fração de classe hegemônica, que detém a preponderância política no interior do bloco no poder. O indicador da preponderância é o fato dessa fração de classe ter seus interesses econômicos prioritariamente contemplados pela política econômica e social do Estado”.’
Podemos resumir o argumento central do texto ao seguinte: sendo o BC autônomo, ele se encontra nas mãos dos banqueiros, que, por definição, formam uma camarilha sombria com intenções nefastas – sendo a maior delas o lucro a qualquer custo, nem que este represente a bancarrota do País. A autonomia do BC refletiria o endurecimento da dominação elitista no Brasil, refletida diretamente no Estado brasileiro. Vocês notaram alguma diferença entre essa argumentação e o anacrônico discurso marxista-leninista que ainda domina boa parte das mentes da dita intelligentsia brasileira? Nós, não.
Mas, esperem! Não acabou! O melhor, claro, está no final do texto:
‘A independência ou autonomia do BC em relação ao governo é, portanto, incoerente com a chamada soberania popular que se manifestaria no processo eleitoral. A rigor, tal proposta se configuraria como um estelionato eleitoral. Se votamos num determinado candidato, esperamos dele uma determinada política econômica. Como admitir que outros a façam de forma autônoma?
Um dos aspectos importantes desta discussão é que ela revela o conteúdo autoritário crescente das sociedades capitalistas contemporâneas, gerando sérias restrições para a expressão política da luta de classes.’
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‘Simplificando o processo que vivemos, o imperialismo na atualidade baseia-se em, de um lado, controlar as políticas econômicas nacionais, para deter o controle da repartição da renda e redirecioná-la para o centro da acumulação, utilizando, especialmente o expediente da dívida pública. Por conseqüência, o endividamento empurra o Estado para a crise fiscal. De outro lado também, promover as reformas, cujo sentido é desonerar o Estado das despesas sociais, liberando recursos financeiros para sustentação do mecanismo do endividamento público. É fácil perceber que esses fatores conjugados podem conduzir à deslegitimação do Estado e, ao mesmo tempo, indicam a possibilidade de uma saída autoritária.
O controle dos Bancos Centrais, pela posição estratégica que ocupam nas economias nacionais, é um elemento chave desse processo. Como o BC não é independente do “mercado” e como o Tesouro Nacional não é independente do BC, então, a independência do BC em relação ao governo significa o controle do Tesouro Nacional pelo “mercado”, por intermédio do BC.’
O norte ideológico do texto é indiscutivelmente explícito. Só não vê quem não quer. O que revolta, contudo, não é o fato de a professora apresentar esse texto à turma. O ponto realmente revoltante é a professora – que tem o dever de zelar pela construção isenta do conhecimento, sem dar prevalência a uma ou outra ideologia política – dizer que não iria se posicionar com relação ao assunto da autonomia do BC, mas defender que cada um dos pontos-chave ideológicos do texto corresponde rigorosamente à realidade. Isso é ainda mais grave quando o texto recorre a mentiras para embasar a sua lógica argumentativa: ao contrário do que o autor disse, o COPOM não consulta os bancos acerca do comportamento das variáveis macroeconômicas, mas consulta seus próprios relatórios de desempenho da economia (fruto do trabalho de mensuração dos indicadores econômicos, que fica a cargo de analistas e técnicos do BC). A maioria dos alunos em sala ficou chocada com a realidade distorcida que lhes foi descortinada como fato concreto. O nível desigual de conhecimento entre professora e estudantes serviu para a cooptação imediata destes ao pensamento daquela.
A transformação de aulas em processos de doutrinamento ideológico não é, infelizmente, nenhuma novidade na UnB. Entretanto, devemos lutar de maneira incansável contra essa tendência perniciosa. Cada um tem seus motivos para adotar determinada postura ideológica diante da realidade, e isso é fruto de um sem-número de subjetividades que não estão em questão nesse desabafo. O que está em questão é a desonestidade acadêmica de alguns professores em subverter o espaço que têm para construir o conhecimento com os alunos e utilizá-lo para doutrinar os estudantes, ensinando que sua visão de mundo corresponde à visão de mundo correta.
Usando as palavras do estadista Óscar Arias (ex-presidente da Costa Rica), ‘enquanto nós continuamos discutindo sobre ideologias, continuamos discutindo sobre todos os “ismos” (qual é o melhor?, capitalismo, socialismo, comunismo, liberalismo, neoliberalismo, socialcristianismo…), os asiáticos encontraram um “ismo” muito realista para o século XXI e o final do século XX, que é o pragmatismo’. Se continuarmos a perder tempo no ambiente acadêmico com ideologias sem utilidade e com cheiro de naftalina, insistindo em adotar uma postura falaciosa e sofismática frente aos nossos verdadeiros problemas (como a profunda crise de infraestrutura na qual o Brasil está atolado até o pescoço), nunca seremos mais do que uma imensa república de bananas.
Não podemos mudar de imediato essa situação no País como um todo, mas podemos começar a fazer isso na UnB. Precisamos nos posicionar firmemente contra a doutrinação ideológica dentro de sala e militar por um ensino de qualidade, alicerçado na construção plural do conhecimento, caso queiramos uma universidade que realmente atenda a seus propósitos.
Postado originalmente em http://unbconservadora.blogspot.com/2010/07/aula-como-instrumento-de-doutrinacao.html