Doutrinação: o que já era ruim ficou pior

Por Luís Lopes Diniz Filho

Já comentei em outros posts que uma das razões para o forte predomínio de teorias críticas completamente ultrapassadas na geografia contemporânea é a doutrinação no ensino. Quando eu era aluno do ensino médio, na primeira metade dos anos 1980, isso já acontecia. Tudo o que as professoras de história e de geografia me ensinaram nessa fase foi puro marxismo. Aprendi o básico sobre a teoria marxista do valor trabalho lendo o livro História da riqueza do homem, de Leo Huberman (1981), e alguns volumes da Coleção “Primeiros Passos”. Por sua vez, a teoria do valor utilidade não era nem sequer mencionada!

Esse esforço deliberado para transformar os alunos em marxistas sem nem lhes dar a chance de saber que existem outras perspectivas já era uma prática doutrinadora absolutamente condenável, mas, pelo menos, havia naquela época a preocupação em fazer dos alunos marxistas inteligentes. Ou seja, ensinava-se aos adolescentes a teoria econômica que Marx formulou para chegar à conclusão de que, numa economia capitalista, as relações de trabalho são necessariamente relações de exploração e de dominação. Todavia, o tempo foi passando e, à medida em que a qualidade do ensino público decaía, até a doutrinação foi ficando  pior, já que mais simplificadora do que sempre fora.

A melhor maneira de provar essa piora do que sempre foi ruim é comparar duas obras didáticas de Eustáquio de Sene e de João Carlos Oliveira Moreira. Em 1998, o livro Geografia geral e do Brasil: espaço geográfico e globalização, começava dizendo o seguinte:

Foi Karl Marx, um dos mais influentes pensadores alemães do século passado, quem desvendou o mecanismo de exploração capitalista, que é a essência do lucro, chamando-o de mais-valia. (Sene; Moreira, 1998, p. 19 – negrito no original).

Seguia-se daí uma explicação didática sobre as “duas maneiras principais de aumentar a taxa de exploração ou de mais-valia do trabalhador: a forma absoluta e a forma relativa”. Na próxima página, essas explicações eram ilustradas com uma charge que mostrava um burguês de cartola pagando um operário com uma das mãos enquanto com a outra lhe tirava a carteira do bolso da calça. E o patrão tinha um dente de vampiro saindo dos lábios sorridentes…

A explicação dada por esses autores já era bem mais sumária do que aquela com a qual eu tive contato anos antes ao ler o livro de Huberman, mas ainda havia a preocupação de explicar minimamente os passos lógicos que conduziram Marx às suas conclusões. Contudo, na página 167 do livro Geografia (Sene; Moreira, 2009), vemos que os autores repetem quase textualmente a passagem citada acima, mas a explicação que vem na sequência se resume a apenas cinco linhas! Depois disso, a exposição já muda para o processo histórico de desenvolvimento do capitalismo, o qual é abordado sempre de acordo com teorias marxistas.

OK, pelo menos a ilustração mudou de tom nesse livro mais recente. Ao invés de um burguês sanguessuga, vemos ali um operário caminhando feliz com algumas notas de dinheiro na mão. Trata-se aí de mostrar que, no capitalismo industrial, o assalariamento substitui a escravidão porque o operário é mais produtivo do que o escravo e, ao contrário deste, possui poder de consumo. É bem o tipo de interpretação que dá base à tese segundo a qual a escravidão só foi abolida em virtude de um cálculo econômico interesseiro da burguesia, tese essa bastante contestável à luz da história econômica e dos movimentos abolicionistas na Inglaterra (Narloch, 2009).

Seja como for, vemos que a condenação moral do lucro e do assalariamento já não parece tão enfática no segundo livro citado de Sene e Moreira, mas, ao mesmo tempo, a explicação da teoria do valor trabalho tornou-se tão sumária que ao aluno não resta nada além de decorar a ideia de que o valor criado pelo operário em sua jornada de trabalho é sempre maior do que o salário recebido em troca. Ao invés de marxistas que, embora ignorantes de outras perspectivas teóricas, entendem o que estão falando, busca-se agora formar marxistas que são meros repetidores de frases feitas!

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HUBERMAN, L. História da riqueza do homem. 17. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.

NARLOCH, L. Guia politicamente incorreto da história do Brasil. São Paulo: Leya, 2009.

SENE, E.; MOREIRA, J. C. O. Geografia geral e do Brasil: espaço geográfico e globalização. São Paulo: Scipione, 1998.

SENE, E.; MOREIRA, J. C. O. Geografia. 1. ed. São Paulo: Scipione, 2009.

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