Entrevista concedida por Cláudio Haddad à jornalista Monica Weinberg (Veja, Páginas Amarelas, 07.05.2014).
Engenheiro e doutor em economia pela Universidade de Chicago. Claudio Haddad. 67 anos, sofreu, digamos assim, uma reprovação no campo acadêmico. Ele resolveu fazer, só de curiosidade, a prova de conhecimentos gerais do Enade, o exame do Ministério da Educação para os recém- formados nas universidades. Segundo o gabarito oficial do MEC, ele errou metade das questões. Como assim? Haddad, que preside o Insper, faculdade que fundou em São Paulo com o nome lbmec, em 1999, depois de quinze anos como sócio do Banco Garantia, está desatualizado? Nada disso. O defeito é da prova, que não se propõe a medir conhecimento, mas a aferir o grau de alinhamento do candidato com a ideologia em voga em Brasília. Diz Haddad: “E uma prova com viés ideológico, alta dose de subjetividade e um olhar simplista sobre as grandes questões da atualidade”.
O que o motivou a fazer uma prova de conhecimentos gerais para recém-formados?
Meus alunos se saíram mal, e quis entender em que tipo de conhecimento eles patinavam. Passei o olho nas questões em uma cópia do teste. Eram enunciados enormes, que me deram a impressão de conter alto grau de subjetividade. Por isso, resolvi fazer a prova duas vezes. Na primeira, respondi tudo da maneira que julguei a mais correta: na segunda vez, assinalei as opções que imaginei serem aquelas que os avaliadores considerariam acertadas por terem um viés mais ideológico. Resultado: à luz de meus conhecimentos, errei quatro de oito questões de múltipla escolha. Ou seja, um fiasco. Já na versão que fiz com o único intuito de dar as respostas que os examinadores queriam, fui muito bem. Acertei sete. Só errei mesmo uma em que, sinceramente, apesar de ter me detido nela inúmeras vezes, até agora não vi lógica.
O senhor está dizendo que a prova foi mal formulada?
Sem dúvida. Não se pode dizer que uma questão de conhecimentos gerais que se fia num viés político e ideológico e abre espaço para interpretações subjetivas seja bem formulada. Uma boa prova deveria se basear em fatos objetivos, e não em crenças.
Dê um exemplo de como o viés ideológico aparece no Enade?
Uma das questões que mais me espantaram pede aos estudantes que reflitam sobre ética e cidadania, marcando as definições que expressem bem os dois conceitos. Uma das alternativas diz que, sem o estabelecimento de regras de conduta, não se constrói uma sociedade democrática e pluralista, terreno sobre o qual a cidadania viceja como valor. Está correto. A outra enfatiza que o princípio da dignidade humana é o avesso do preconceito. Também está certo. A zona de sombra paira sobre a terceira proposição, a que o MEC considera correta. “Toda pessoa tem direito ao respeito de seus semelhantes, a uma vida digna, a oportunidades de realizar seus projetos, mesmo que esteja cumprindo pena de privação de liberdade, por ter cometido delito criminal, com trâmite transitado e julgado”. Isso é apenas uma divagação opinativa do formulador da prova sobre como seriam as condições ideais de vida de um preso. Existem maneiras bem mais objetivas e lógicas de testar o conhecimento do candidato sobre ética e cidadania.
E por que o senhor discorda da afirmativa?
Como alguém que cometeu um crime e está preso pode ter garantido o seu direito de realizar “projetos” como os demais cidadãos? É, antes de tudo, um absurdo lógico. Vejo aí uma condescendência típica de certas organizações de direitos humanos, que brigam indiscriminadamente por tudo o que é benefício para o preso: visita íntima, saída à vontade da cadeia. Isso, aliás, está bem em voga no Brasil. Faz parte do caldo ideológico incapaz de ver uma questão tão complexa sob todos os prismas.
O desprezo pela lógica é o pior defeito das questões do Enade?
A imposição de uma maneira de pensar é igualmente danosa. Uma das perguntas faz uma longa digressão sobre os jovens de hoje, que preferem ficar fechados em seu quarto mexendo no computador e jogando videogame a passear pela praça. 0 texto prega que a imersão no mundo eletrônico desvia a atenção das crianças dos impactos dos danos ambientais. A prova pede que o candidato escolha o título mais adequado para o texto que acabou de ler. Minha opção foi: “Preferências atuais de lazer de jovens e crianças: preocupação dos ambientalistas”. Errei. Para os avaliadores o título correto é: “Engajamento de crianças e jovens na preservação do legado natural: uma necessidade imediata”. Esse não é o título mais adequado para o texto, aliás de péssima qualidade. O que se tem no conjunto de texto e resposta é uma combinação de subjetividade total com pregação ambientalista. A questão não tenta medir o conhecimento do candidato. mas saber quanto ele está enquadrado na maneira de pensar oficial.
Qual é a origem dessas distorções?
Para mim. Está claro que o Enade deixa à mostra o modo torto de ver o mundo da maioria de nossos educadores. Eles são mergulhados nessa ideologia antiempresa, antilucro, antimercado já nas faculdades de pedagogia. Depois tratam de plantar essa visão na cabeça dos estudantes.
Essa é uma característica exclusiva da educação brasileira?
Não. Há um movimento atualmente na França destinado a revisar o ensino de economia, que com o tempo foi se tomando distorcidamente anticapitalista. Está sendo difícil na França restaurar o equilíbrio. No Brasil a situação é pior. Aqui o discurso ideológico se mistura com a falta de conhecimento. O resultado é desastroso. É o triunfo de uma concepção de mundo simplista e equivocada. Gostaria de saber quantos desses pregadores leram Marx e Adam Smith no original. Sim, porque tem muito professor por aí que se baseia em textos curtos e apostilados para ensinar. A prova do MEC é um espelho dessa simplificação. O conhecimento verdadeiro consiste em entender realidades complexas, e não em contorná-las com resumos empobrecedores e enviesados.
Qual a consequência imediata disso?
A radicalização. O discurso ambientalista é um exemplo. Tomou-se uma sucessão de bandeiras e pregações alarmantes com evidente desprezo pela lógica e pela objetividade. A intervenção humana no meio ambiente é ensinada apenas como uma “agressão”. Muitas vezes faltam inteligência e informação na utilização racional dos recursos materiais, mas isso não significa que é impossível agir sobre a natureza sem provocar tragédias ambientais. As crianças também aprendem na escola a repudiar a Revolução Industrial inglesa, lembrada apenas pelas condições de trabalho miseráveis. Mas a miséria já estava lá bem antes e foi justamente com a Revolução Industrial que, pela primeira vez na história da humanidade, a riqueza aumentou exponencialmente para todas as classes. As economias cresceram, a renda per capita se multiplicou e os governos puderam arrecadar mais e implantar programas sociais. Mas a ideologia em voga demoniiza a Revolução Industrial. Isso não é educação de qualidade.
O Enade sofre dessa miopia em relação aos processos econômicos?
Sim. Em um alto grau. Uma questão sobre a crise financeira mundial de 2008 é a prova disso. O texto da pergunta diz que a desregulação dos mercados americanos e europeus levou à formação de uma bolha de empréstimos especulativos e imobiliários que, ao estourar, desencadeou a crise mundial. Falso ou verdadeiro? Para o MEC, é verdadeiro; para mim, falso. Para o MEC, o certo é pôr toda a culpa no sistema. Ponto. Com essa ênfase ideológica, perdem-se dimensões importantes para entender as razões da crise. A frouxa política monetária do Fed, o banco central americano, teve muito a ver com a crise. Como teve seu papel o incentivo do governo americano à concessão de crédito imobiliário mesmo para quem, claramente, não poderia pagar. Essas ações de Washington foram decisivas para que o mercado de casa própria inflasse em bases irrealistas. Mas a lente ideológica manda apontar a desregulamentação dos mercados como a causa da crise financeira. Isso não é produção de conhecimento, mas simplesmente a divulgação de uma visão equivocada.
Por que as universidades brasileiras ainda são tão pouco inovadoras mesmo se comparadas às de outros países emergentes?
Entre as instituições públicas de elite, dois fatores pesam contra a corrida pela produtividade: elas têm verbas garantidas e o grosso do dinheiro é distribuído sem considerar o relevo da produção científica de cada uma. O princípio do igualitarismo pode até soar bacana, mas contém em seu DNA uma armadilha perversa. Para que todos progridam no mesmo ritmo, o avanço de uns é refreado em função do passo mais lento de outros. Cadê a meritocracia? Nos Estados Unidos, as melhores universidades recebem mais recursos do que as de menor desempenho – e isso não é por acaso. É mérito.
Na última década, o governo federal incentivou a abertura de universidades com o intuito de fomentar certas regiões carentes de ensino de qualidade. Isso ajuda?
É clara essa preocupação em espalhar universidades por todo o território brasileiro, sob o discurso do desenvolvimento regional, mas, para mim, isso significa desperdiçar dinheiro baixando o nível de todos. Sim, porque o dinheiro é finito e a pulverização dele impede os melhores de chegar a um patamar ainda mais alto.
Alguma coisa melhora no ensino superior brasileiro?
Temos centros de excelência já conectados com o mundo lá fora. Poderíamos ter muito mais competição, porém. O economista Edward Glaeser faz uma colocação muito interessante em um de seus livros quando diz que as universidades americanas não resvalaram para o corporativismo justamente porque tinham de competir urnas com as outras. No Brasil, nunca ouvi falar de uma turma de cientistas de um determinado centro de pesquisas preocupada em correr para superar o trabalho de outro grupo. Também não vejo ninguém consternado com o fato de que sua instituição não está entre as melhores do mundo nos rankings. A preocupação em gerar recursos adicionais, então, é algo mais raro ainda.
De quem e a culpa?
Vejo claros problemas de gestão e governança nas universidades públicas. Meu pai foi sub-reitor da UFRJ e não se conformava com o aluguel baixíssimo que a universidade recebia do Canecão. Ele achava que tinha de vender a casa de shows, que assim entraria mais dinheiro no caixa. Mas as resistências internas a qualquer iniciativa que mexa na velha maneira de fazer as coisas são tão grandes que não se faz nada. A UFRJ tem instalações no Rio de Janeiro inteiro. Por que não vender uma parte, concentrar tudo numa mesma área e otimizar recursos? Ai entra uma série de interesses específicos. Tem até o grupo que diz: “Mas está bom assim; a universidade é do lado da minha casa”.
O forte elo entre universidades e empresas ajuda a explicar o alto poder inovador de muitos países. Como o Brasil está nessa área?
O Brasil vem melhorando, mas precisa romper de vez com uma ideologia antiga segundo a qual a parceria com o mercado é vista como ameaça à autonomia universitária. Bobagem. Todas as grandes instituições de ensino superior americanas recebem dinheiro de empresas e não se privam com isso de sua liberdade criativa. Ao contrário: são as maiores fornecedoras de prêmios Nobel do planeta. Se o pesquisador ficar isolado em sua torre de marfim, dificilmente produzirá conhecimento relevante. Mas percebo, inclusive pelas conversas dos alunos em minha escola, que surge no Brasil uma geração de mente mais aberta e empreendedora. Ela é essencial para a criação de um ecossistema favorável à inovação e à produção de riqueza.
Quais as características desse ecossistema?
Empreendedores, inovadores, academia, empresas e financiadores trabalhando juntos. São Paulo reúne condições para a criação disso, que se vê em ebulição em lugares como Boston e Tel-Aviv. Estamos falando de criar no Brasil uma cultura que tenha na produção de conhecimento seu maior valor.